5 de out. de 2021

Destino de poeta :: Octavio Paz

Palavras? Sim, de ar

e perdidas no ar.

Deixa que eu me perca entre palavras,

deixa que eu seja o ar entre esses lábios,

um sopro erramundo sem contornos,

breve aroma que no ar se desvanece.


Também a luz em si mesma se perde.

PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo. Transblanco (em torno a Blanco de Octavio Paz. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

..................................

 ¿Palabras? Sí, de aire,

y em el aire perdidas.

Déjame que me pierda entre palavras,

déjame ser el aire en unos labios,

un soplo vagabundo sin contornos,

breve aroma que el aire desvanece.


También la luz en sí misma se pierde.



20 de set. de 2021

A mão :: Carlos Drummond de Andrade

Entre o cafezal e o sonho o garoto pinta uma estrela dourada na parede da capela, E nada mais resiste à mão pintora. A mão cresce e pinta o que não é para ser pintado mas sofrido. A mão está sempre compondo módul-murmurando o que escapou à fadiga da Criação e revê ensaios de formas e corrige o oblíquo pelo aéreo e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos. A mão cresce mais e faz do mundo como-se-repete o mundo que telequeremos. A mão sabe a cor da cor e com ela veste o nu e o invisível. Tudo tem explicação por que tudo tem (nova) cor. Tudo existe por que foi pintado à feição de laranja mágica, não para aplacar a sede dos companheiros, principalmente para aguçá-la até o limite do sentimento da Terra domicílio do homem. Entre o sonho e o cafezal entre guerra e paz entre mártires, ofendidos, músicos, jangadas, pandorgas, entre os roceiros mecanizados de Israel, a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil entre o amor e o ofício eis que a mão decide: Todos os meninos, ainda os mais desgraçados, sejam vertiginosamente felizes como feliz é o retrato múltiplo verde-róseo em duas gerações da criança que balança como flor no cosmo e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente em seu poder de encantação. Agora há uma verdade sem angústia mesmo no estar-angustiado. O que era dor é flor, conhecimento plástico do mundo. E por assim haver disposto o essencial, deixando o resto aos doutores de Bizâncio, bruscamente se cala e voa para nunca-mais a mão infinita a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari. Carlos Drummond de Andrade, em homenagem ao pintor Candido Portinari que havia deixado de viver em 6 de fevereiro de 1962. Do livro Lição de coisas (1962). In Carlos Drummond de Andrade. Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1983.

14 de set. de 2021

Não te rendas :: Mario Benedetti

Não te rendas, ainda é tempo
De se ter objetivos e começar de novo,
Aceitar tuas sombras,
Enterrar teus medos
Soltar o lastro,
Retomar o vôo.

Não te rendas que a vida é isso,
Continuar a viagem,
Perseguir teus sonhos,
Destravar o tempo,
Correr os escombros
E destapar o céu.

Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio queime,
Ainda que o medo morda,
Ainda que o sol se esconda,
E o vento se cale,
Ainda existe fogo na tua alma.
Ainda existe vida nos teus sonhos.

Porque a vida é tua e teu também o desejo
Porque o tens querido e porque eu te quero
Porque existe o vinho e o amor, é certo.
Porque não existem feridas que o tempo não cure.
Abrir as portas,
Tirar as trancas,
Abandonar as muralhas que te protegeram,

Viver a vida e aceitar o desafio,
Recuperar o sorriso,
Ensaiar um canto,
Baixar a guarda e estender as mãos
Abrir as asas
E tentar de novo
Celebrar a vida e se apossar dos céus.

Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio te queime,
Ainda que o medo te morda,
Ainda que o sol ponha e se cale o vento,
Ainda existe fogo na tua alma,
Ainda existe vida nos teus sonhos
Porque cada dia é um novo começo,
Porque esta é a hora e o melhor momento
Porque não estás sozinho, porque eu te amo

13 de set. de 2021

A lagartixa :: Jacques Prévert

Rich Lo

A lagartixa do amor
Fugiu mais uma vez
E me deixou o rabo entre os dedos
Bem feito
Eu quis guardá-la para mim

:::::::

Le lézard de l'amour
S'est enfui encore une fois
Et m'a laissé sa queue entre les doigts
C'est bien fait
J'avais voulu le garder pour moi



PRÉVERT, Jacques. Histoires et d'autres histoires. Paris: Le point du jour, 1963.

6 de set. de 2021

Paulo Henriques Britto: "Fábula"

Picasso

Um pensamento pensado

até a total exaustão

termina por germinar

no mesmo exato lugar

sua exata negação.


Enquanto isso, uma ideia

trauteada numa flauta

faz uma cidade erguer-se --

é claro, sem alicerces,

mas ninguém dá pela falta.


BRITTO, Paulo Henriques. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

31 de ago. de 2021

O quanto possas :: CAVÁFIS, Constantinos

Se não podes afeiçoar tua vida como queres,

deves ao menos tentar, o quanto

possas, isto: não a rebaixes

no excessivo comércio do mundo,

no excesso de palavras e de gestos.


Não a rebaixes levando-a para dar

passeios, exibindo-a o tempo todo

nas reuniões e comemorações

em que a tolice diária se compraz,

até fazeres dela uma estranha importuna.


 In: PAES, José Paulo (org e trad.). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.


25 de ago. de 2021

Carta para Tania Schucht :: Antonio Gramsci

2 de janeiro de 1928

Querida Tania,

E então o ano novo começou. É preciso fazer planos para uma vida nova, segundo a tradição: mas embora tenha pensado muito sobre tal plano, nunca consegui concretizá-lo. Essa sempre foi uma grande dificuldade em minha vida, desde meus primeiros anos racionais.

Naquela época, as escolas de ensino fundamental atribuíam, nessa época do ano, como tema de composição, a pergunta: O que você vai fazer da sua vida? Uma pergunta difícil, que resolvi pela primeira vez, aos oito anos de idade, fixando meus olhos na profissão de carroceiro. Descobri que o carroceiro reúne todas as características de utilidade e deleite: sacode as rédeas e guia os cavalos, mas, ao mesmo tempo, realiza um trabalho que enobrece o homem e lhe dá o pão de cada dia.

Permaneci fiel a essa orientação também no ano seguinte, mas por motivos que eu descreveria como extrínsecos. Se eu pudesse ser sincero, teria que dizer que minha aspiração mais viva era me tornar um Assistente de Tribunal. Por quê? Porque naquele ano veio à minha aldeia, como Assistente de Tribunal, um homem idoso que possuía um pequeno poodle muito charmoso, sempre vestido com esmero, com pequenas fitas vermelhas no rabo, uma capa minúscula nas costas, um colarinho envernizado e um pequeno freio de cavalo em torno de sua cabeça.

Não conseguia separar a imagem do pequeno poodle de seu dono ou de sua profissão, mas com muitos arrependimentos e por causa de uma lógica formidável e de um forte senso de dever que faria corar os grandes heróis, renunciei a essa perspectiva que tanto me seduzia. Sim, descobri que seria inútil tentar ser um Assistente de Tribunal e assim possuir um poodle tão maravilhoso: eu não sabia de cor os oitenta e quatro artigos da Constituição da República! Exatamente isso!

Eu havia chegado à segunda turma do ensino fundamental (a primeira revelação das virtudes cívicas do carroceiro!) e comecei a pensar, no mês de novembro, em fazer os exames de dispensa, para passar para a quarta turma, saltando sobre a terceira: Eu me considerava capaz de tanto, mas quando me apresentei ao Diretor de Estudos para atender ao apelo protocolado, me deparei com, à queima-roupa, a pergunta: Mas você conhece os oitenta e quatro artigos da Constituição? Eu nunca sequer tinha pensado nesses artigos: tinha-me limitado a estudar a noção de direitos e deveres do cidadão contidos no meu livro.

Aquela foi uma advertência terrível para mim, que me impressionou mais porque tinha participado, pela primeira vez, no passado dia 20 de setembro, do desfile comemorativo, com uma pequena lanterna veneziana, e tinha gritado com os outros: Viva o Leão de Caprera! Viva os mortos de Staglieno (não me lembro exatamente se chamei os mortos ou o profeta de Staglieno; possivelmente ambos, para variar), certamente porque era para ser promovido um concurso e poder conquistar os títulos jurídicos, tornando-me um cidadão ativo e perfeito. No entanto, não conhecia os oitenta e quatro artigos da Constituição. Que tipo de cidadão eu era, então? E como eu poderia aspirar tão ambiciosamente a me tornar um Assistente de Tribunal e possuir um cachorro com uma fita e uma capa? O Assistente de Tribunal é uma engrenagem na roda do estado (mas eu tinha pensado que ele era a roda inteira); ele é um depositário e guardião da lei, também um protetor contra qualquer tirano que queira nos pisar. E eu ignorei os oitenta e quatro artigos!

Assim os meus horizontes ficaram limitados, e mais uma vez aclamei as virtudes cívicas do carroceiro, que de qualquer maneira podia ter um cão, mesmo ele, e deixá-lo ficar completamente sem fitas ou capa. Veja como os planos construídos de maneira muito rígida e esquemática explodem, destruindo-se contra a dura realidade, quando se tem uma consciência vigilante e zelosa.


Abraços,

Antonio

Tania Schucht era cunhada de Antonio Gramsci, e estava encarregada de seus negócios. A carta provavelmente foi enviada da ilha-prisão de Ustica. 

O dia 20 de setembro é a data em que se celebra a unificação da Itália. É a data em que, em 1870, a brigada dos Bersaglieri entrou em Roma e pôs fim ao poder temporal do Papa. A data não é celebrada no Vaticano. Os Bersaglieri surgiram na Sardenha, onde Gramsci nasceu e cresceu. 

Garibaldi era o Leão de Caprera. Caprera é uma pequena ilha na costa da Sardenha, para onde Garibaldi foi ao se aposentar. Ele nasceu em Nice. 

Staglieno é o cemitério em Gênova em que estão sepultadas muitas das grandes figuras da classe política italiana, inclusive o revolucionário Mazzini (descrito por Marx como ‘aquele asno eterno’). 

24 de ago. de 2021

Luiz Roberto Nascimento Silva :: O alfabeto da devassa


Van Gogh 

Por mais duro que pareça agora

isso tudo passará.

A tempestade irá embora.


As nuvens pesadas se dissiparão.

Poderemos olhar o céu,

sol poente; novamente


Guardaremos a lição:

para cada azul cintilante

brilhando sob nossas cabeças


existe igual noite de trevas

mosaico invertido,

grafite da escuridão.



SILVA, Luiz Roberto Nascimento. O alfabeto da devassa. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

17 de ago. de 2021

O portão :: Lêdo Ivo

Monet

O portão fica aberto o dia inteiro

mas à noite eu mesmo vou fechá-lo.

Não espero nenhum visitante noturno

a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos.

A noite é tão silenciosa que me faz escutar

o nascimento dos mananciais nas florestas.

Minha cama branca como a via-láctea

é breve para mim na noite negra.

Ocupo todo o espaço da mundo. Minha mão desatenta

derruba uma estrela e enxota um morcego.

O bater de meu coração intriga as corujas

que, nos ramos dos cedros, ruminam o enigma

do dia e da noite paridos pelas águas.

No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo.

Sou o vento que apalpa as alcachofras

e enferruja os arreios pendurados no estábulo.

Sou a formiga que, guiada pelas constelações,

respira os perfumes da terra e do oceano.

Um homem que sonha é tudo o que não é:

o mar que os navios avariaram,

o silvo negro do trem entre fogueiras,

a mancha que escurece o tambor de querosene.

Se antes de dormir fecho o meu portão

no sonho ele se abre. E quem não veio de dia

pisando as folhas secas dos eucaliptos

vem de noite e conhece o caminho, igual aos mortos

que todavia jamais vieram, mas sabem onde estou

— coberto por uma mortalha, como todos os que sonham

e se agitam na escuridão, e gritam as palavras

que fugiram do dicionário e foram respirar o ar da noite que cheira a jasmim

e ao doce esterco fermentado.

os visitantes indesejáveis atravessam as portas trancadas

e as persianas que filtram a passagem da brisa e me rodeiam.

Ó mistério do mundo! Nenhum cadeado fecha o portão da noite.

Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir sozinho

protegido pelo arame farpado que cerca as minhas terras

e pelos meus cães que sonham de olhos abertos.

À noite, uma simples aragem destrói os muros dos homens.

Embora o meu portão vá amanhecer fechado

sei que alguém o abriu, no silêncio da noite,

e assistiu no escuro ao meu sono inquieto.


 Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

10 de ago. de 2021

Acreditava antigamente :: Heirich Heine: "Ehmals glaubt ich, alle Küsse"

Man Ray

Acreditava antigamente

Que todo beijo que me tiram,

Ou que recebo de presente,

Fosse por obra do destino.


Deram-me beijos e beijei,

Antes com tanta seriedade,

Como se obedecesse às leis

Que regem a necessidade.


Agora sei como é supérfluo

E não me faço de rogado,

Vou dando beijos em excesso,

Incrédulo e despreocupado.

....................

Ehmals glaubt ich, alle Küsse,

Die ein Weib uns gibt und nimmt,

Seien uns, durch Schicksalsschlüsse,

Schon urzeitlich vorbestimmt.


Küsse nahm ich, und ich küßte

So mit Ernst in jener Zeit,

Als ob ich erfüllen müßte

Thaten der Notwendigkeit.


Jetzo weiß ich, überflüssig,

Wie so manches, ist der Kuß,

Und mit leichtern Sinnen küß ich,

Glaubenlos im Überfluß.




HEINE, Heinrich: "Uma gaivota. Poemas, 1830-1839". In:_____. VALLIAS, André (org., intr. e trad.). Heine, heim? Poeta dos contrários. São Paulo: Perspectiva, Goethe Institut, 2011. 

3 de ago. de 2021

Tempo das rupturas :: Adília Lopes

    


      Acabou

      o tempo das rupturas

      

     Quero

      ser

      reparadora

      de brechas.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...