26 de jun. de 2014

Clara :: Caetano Veloso

Lawrence Alma-Tadema

Quando a manhã madrugava 
clama 
alta 
clara 
clara morria de amor 
faca de ponta flor e flor 
cambraia branca sob o sol 
cravina branca amor 
cravina e sonha 
a moça chamada clara 
água 
alma 
lava 
alva cambraia no sol 
galo cantando cor e cor 
pássaro preto dor e dor 
um marinheiro amor 
distante amor 
e a moça sonha só 
um marinheiro sob o sol 
onde andará o meu amor 
onde andará o amor 
no mar amor 
no mar ou sonha 
se ainda lembra o meu nome 
longe 
longe 
longe 
onde estiver numa onda num bar 
numa onda que quer me levar 
para um mar de água clara 
clara 
clara 
clara 
ouço meu bem me chamar 
faca de ponta dor e dor 
cravo vermelho no lençol 
cravo vermelho amor 
vermelho amor 
cravina e galos 
e a moça chamada clara 
clara 
clara 
clara 
alma tranqüila de dor 

25 de jun. de 2014

Rebecca Kinkead (1968, Natick, Massachusetts, E.U.A)




















A Serenata :: Adélia Prado

Andrew Wyeth

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Igual-desigual. Carlos Drummond de Andrade

Portinari 

Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinhos são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais (...)
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

In: Nova reunião. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1983. p.537.

24 de jun. de 2014

Hei de amoldar-me a ti como o rio a seu leito :: Dulce María Loynaz

Victor Pasmore, 1950

Hei de amoldar-me a ti como o rio a seu leito, 
como o mar a sua praia, como a espada a sua bainha.
Hei de correr em ti, hei de cantar em ti, hei de guardar-me em ti
de agora em diante.
Fora de ti há de me sobrar o mundo, como ao rio sobra
o ar, ao mar a terra, à espada a mesa do convite.
Dentro de ti não há de me faltar brancura do limo para
minha corrente, perfil de vento para minhas ondas, ajuste e
repouso para meu aço.
Dentro de ti está tudo; fora de ti não há nada.
Tudo o que tu és está em seu lugar, tudo o que não sejas tu me há
de ser vão.
Caibo em ti, estou feita a tua medida; mas se for em mim onde
algo falte, cresço... Se for em mim onde algo sobre,
corto.

23 de jun. de 2014

Vestida de sonhos :: Livia Garcia Roza

Ekaterina Panikanova

Vestida de sonhos sou completa.
Livia Garcia Roza

Cumprimento :: Dorothy Parker

Kris Heding 

Para tal minha mãe me aqueceu 
e me chamava para casa antes do breu 
e induzia a noite da infância a ficar quieta 
e me dava fortes cereais na minha dieta 
e às oito em ponto me fazia deitar 
e prendia meus cabelos, sem me permitir engordar 
e vigiava meu sentar, minha postura 
para eu me tornar uma mulher madura 
e ouvir um assobio e perder a razão 
e fazer caquinhos do meu coração. 

22 de jun. de 2014

Tomo conta do mundo :: Clarice Lispector

Starry night - Edvard Munch, 1922-1924

Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar e vejo as espessas espumas mais brancas e que durante a noite as águas avançaram inquietas, vejo isto pela marca que as ondas deixam na areia. Olho as amendoeiras da rua onde moro. Antes de dormir tomo conta do mundo e vejo se o céu da noite está estrelado e azul-marinho porque em certas noites em vez do negro o céu parece azul-marinho intenso, cor que já pintei em vitral. Gosto de intensidades.


21 de jun. de 2014

Gilvan Barreto :: Fotografia












 http://www.gilvanbarreto.com

As coisas :: Arnaldo Antunes


As coisas têm peso,
massa,
volume,
tamanho,
tempo,
forma,
cor,
posição,
textura,
duração,
densidade,
cheiro,
valor,
consistência,
profundidade,
contorno,
temperatura,
função,
aprência,
preço,
destino,
idade,
sentido.
As coisas não têm paz.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...