22 de jun. de 2016

Epitáfio :: Juan Gelman

          Um pássaro vivia em mim.
          Uma flor viajava no meu sangue.
          Meu coração era um violino.
          Quis ou não quis. Mas às vezes
          me quiseram. Também me
          alegravam: a primavera,
          as mãos juntas, o feliz.
          Digo que o homem deve sê-lo!
          Aqui jaz um pássaro.
          Uma flor.
          Um violino.
.........
Epitafio

Un pájaro vivía en mí.
Una flor viajaba en mi sangre.
Mi corazón era un violín.
Quise o no quise. Pero a veces
me quisieron. También a mí
me alegraban: la primavera,
las manos juntas, lo feliz.
¡Digo que el hombre debe serlol
Aquí yace un pájaro.
Una flor.
Un violín.

revista EL TÚNEL, março 2014.Tradução de Antonio Miranda

21 de jun. de 2016

Explicação do sopro :: Matilde Campilho

Século XXI. Certos homens se fecham em quartos de hotel porque nos lugares anônimos é muito possível ficar encostado numa parede branca vendo a água correr no chão do chuveiro. Dois rapazinhos pegam as bicicletas e pedalam quatrocentos e vinte quilômetros até achar a costa. Ao alcançá-la, tiram suas roupas e não mergulham: só encostam a zona lombar na areia e repetem até ao infinito a ladainha da tabuada do sete. Um bombeiro termina seu turno de vinte e quatro horas e entra no boteco junto à estátua de São Tarso. Pede um conjunto de sete pães de queijo e nos espaços entre cada um dos pães ele fica procurando um pedaço da túnica de Deus. O motorista do ônibus sabe perfeitamente que dentro da mala da senhora de rosto limpo tem uma caixa de jóias que contém uma caixa de medicamentos que contém uma caixa de anel que contém uma bala. O tocador de kalimba está muito consciente de que hoje o mantra nasce da mistura de um cântico de procissão com o latir do cachorro, e está consciente também de que todo o desenho acha sua acústica perfeita nas pequenas eremitas. Aquele que pinta a natureza, o ladrão de ossos, sabe que deve empreender seu trabalho em posição horizontal, de corpo muito junto ao chão. E se por acaso o observarmos no processo por mais de oito minutos, podemos reparar que sua caixa torácica constantemente toca a tela, sempre na mesma cadência. Porque ele, herdeiro de todos os impressores e selvagens, sabe que só tem uma forma de desenhar as flores: na terra. A moça de vinte e sete anos ainda está sentada ao toucador, de frente para o próprio rosto, absolutamente indecisa sobre qual dos objetos escolher. Entre o baton alaranjado, a carabina calibre 12, o pó de arroz e o crucifixo em miniatura vai uma distância de dois passos a galope.

Kimmo Olavi Kaivanto (1932 Tampere – 2012 Helsinki)





18 de jun. de 2016

A Casa do Meu Avô :: Carlos Lacerda




Há uma ponta de mangueira a que os filhotes de manga imprimem movimento delicado. Ela se mexe enquanto todo o resto da massa vegetal jaz inerte. Essa fina extremidade do galho, como uma antena, tem vida própria; embora lhe venha toda a seiva das entranhas da terra ela parece autônoma, acena, acolhe, dá boas-vindas virentes. Lá estão, da flor crestada pelo frio de junho transformada em pequenos frutos, entre folhas muito macias e verdes, os sinais que a árvore me faz.

Quem disse que a esquizofrenia é uma doença do sangue teve razão. Ela baixa nas veias e neste momento me move, estuante, na direção do galho me me acena, da lua que se entranha em mim, das vigas e ripas que cercam os escombros e lhes dão vida, pois essa ruína em vias de reconstrução me diz muitos segredos, me explica, me decifra, me convida a mergulhar para sempre em seus alicerces e ali deixar meu sangue, meus ossos, as seivas todas do meu ser que começa a se cansar do esforço de viver em vão.
A Casa do Meu Avô.  p. 28-29

16 de jun. de 2016

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos de Mario Quintana



Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim... 
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo, 
porém não sei que luz as iluminaria 
que terias de fechar teus olhos para as ouvir... 
Sim! Uma luz que viria de dentro delas, 
como essa que acende inesperadas cores 
nas lanternas chinesas de papel! 
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas 
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te 
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento 
da Poesia... 
como uma pobre lanterna que incendiou!

15 de jun. de 2016

O elefante :: Carlos Drummond de Andrade

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.

Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.

É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

Alegria de Renata Pallottini


Fico contente quando vejo gente
na minha casa.
Fico contente quando vejo doce
na minha mesa.

Fico contente quando vejo riso
no meu vizinho, quando vejo a rosa
no jardinzinho, quando vejo arroz
esparramado para os passarinhos.

Fico contente quando vejo a lua
na minha rua.

14 de jun. de 2016

Jardinzinho :: Ana Martins Marques

Dente-
de-leão
língua-
de-vaca
mão-
de-onça
saia-
branca
coração-
negro
pé-
de-gato
orelha-
de-rato
unha-
de-cavalo
brinco-
de-princesa
cu-
de-cachorro
boca-
de-lobo
cabeça-
de-boi
umbigo-
de-vênus
chapéu-
de-sol
cabelo-
de-anjo
olho-
de-dragão
comigo-
ninguém-
pode

Ana Martins Marques. Folha de São Paulo.  Ilustríssima, 04/novembro/2012.

13 de jun. de 2016

A Vida na Hora :: Wislawa Szymborska

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que se trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando,
é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado-eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira
antes ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.

Isto é justo-pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear
nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.

12 de jun. de 2016

A SURPRESA :: BARTOLOMEU CAMPOS QUEIROZ


Vocês percebem que minha história é de amor.
Amor de peixe e de pássaro. Como é o seu início eu não sei.
Acredito que nem os namorados sabem.
A gente só sabe que gosta quando está gostando.
O tempo aqui não tem a mínima importância.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...