Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
30 de jul. de 2021
Ausência :: Lope de Vega
Abater-se, atrever-se, estar furioso,
áspero, brando, liberal, esquivo,
animado, exaurido, morto, vivo,
leal, traidor, covarde, corajoso,
não ver, fora do bem, centro e repouso,
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
desgostoso, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, temeroso;
furtar o rosto ao claro desengano,
beber veneno por licor suave,
esquecer o proveito, amar o dano;
acreditar que o céu no inferno cabe,
ceder a vida e a alma a um desengano;
isto é amor, quem o provou bem sabe.
****
Ir y quedarse, y con quedar partirse,
partir sin alma, y ir con alma ajena,
oír la dulce voz de una sirena
y no poder del árbol desasirse;
arder como la vela y consumirse
haciendo torres sobre tierna arena;
caer de un cielo, y ser demonio en pena,
y de serlo jamás arrepentirse;
hablar entre las mudas soledades,
pedir prestada, sobre fe, paciencia,
y lo que es temporal llamar eterno;
creer sospechas y negar verdades,
es lo que llaman en el mundo ausencia,
fuego en el alma y en la vida infierno.
Lope de Vega
(1562-1635)
Fonte:
https://diplomatique.org.br/a-lira-multipla-de-lope-de-vega/
26 de jul. de 2021
In utilizar :: FLANZER, Sandra Niskier
Gastar, gastar, usar a vida
Deixar que escorra, provar da bica
Gastar, roer, raspar do fundo
Fincar as unhas no umbigo do mundo.
Cravar as mãos, roçar, pegar,
Ir ao encontro de, ralar, ralar
Usar agora, desgastar, se engastar
No tempo breve que passa justo.
Perder, perder, ceder ao outro
O resto pífio desse plano torto
De achar que vivo é o que se encaixa
Quando é a morte que se guarda em caixa.
Porvir, puir, e por ir, desperdiçar
Do impossível, cruzar a faixa
Fuçar o real que no acaso sobrar
E torná-lo inútil a ponto de gostar.
In:_____. Do quarto. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017
20 de jul. de 2021
Por que : Tarso de Melo (Santo André, 1976)
por que
retrair-se à agenda alheia — desistir
dos cinco sentidos — por que o relógio,
as distâncias que cria, o mover-se
a sua sombra — por que as chaves
giradas, o diário trancar-se com a família
— por que a gravata, esperar o fim do dia,
dos dias — por que o espelho, o asseio,
a rotina dos sapatos — por que as senhas,
os códigos, os telefones de emergência,
endereços — por que os passos, os prazos
exíguos, as datas consumidas
como aspirinas
[de Carbono, 2002]
19 de jul. de 2021
Eugénio de Andrade ::Arte dos versos
Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.
ANDRADE, Eugénio de. Rente ao dizer. Fundação Eugénio de Andrade, 1992.
12 de jul. de 2021
Primeiro amor :: Adília Lopes
Primeiro
amor
e não pedi
oiro
Depois pedi oiro e não pedi
amor
Depois
só pedi
pão
depois
perdi-me.
29 de jun. de 2021
Eucanaã Ferraz: "18.05.1961"
Sandro Botticelli
Nasci num lugar pobre,
onde o hospital era longe,
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam:
Nasci mês de maio, azul
de tardes macias,
de pai José,
mãe Maria.
Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade passa
longe, mas daqui eu a vejo
e todo o meu corpo brilha.
FERRAZ, Eucanaã. "18.05.1961". In:_____. Livro primeiro. Rio de Janeiro: Edições do autor, 1990.
São Pedro :: Fernando Pessoa
Tu, que Diabo?, és velho.
És o único dos três que traz velhice
Às festas. Tuas barbas brancas
Têm contudo um ar terno
A que o teu duro olhar não dá razão.
Parece que com essas barbas brancas
Por um fenómeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.
Carcereiro do céu, isso é o que és.
Basta ver o tamanho dessas chaves –
As que Roma cruzou no seu brasão.
Segundo aquele passo do Evangelho
Do «Tu és Pedro» etcetera (tu sabes),
Que é, afinal uma fraude
Meu velho, uma interpolação.
Carcereiro do céu, que chaves essas!
Nem dão vontade de ser bom na terra,
Se, segundo evangélicas promessas
Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.
Isso – fecharem-me – não quero eu,
Nem com Deus e o que é seu
Que o estar fechado faz-me mal
Até na beatitude do teu céu,
Entre os santos do paraíso,
(A liberdade – Deus dá a Deus –
Um Deus que não sei se é o teu),
O estar fechado, aqui ou ali, dizia eu
Faz-me terríveis cócegas no juízo.
Enfim, que direi eu de ti, amigo,
Que não seja uma coisa morta,
Anti-popular, gongórica,
Por fruste deselegante,
Como de quem, sem saber nada, exausto,
Começo por duvidar bastante,
Desculpa-me chaveiro antigo,
De que tivesses existência histórica.
Mas isso, é claro, não importa
Se nos trazes
A alegria da singeleza
Ou a bondade que não sabe ter tristeza.
O pior é que nada disso fazes.
O teu semblante é duro e cru
E as barbas que roubaste ao Deus que tens
Só arrancam aos dandies teus loquazes
Ditos de dandies cínicos desdéns.
Que diabo, és uma série de ninguéns.
O Santo são as chaves, e não tu.
Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,
Para outros as barbas já citadas,
Para uns o tal fatídico chaveiro
Que fecha à chave as almas sublimadas.
Para uns tu fundaste a Roma do Papado
(Andavas bêbado ou enganado
Ou esqueceste
O teu posto quando o fizeste)
E para outros enfim, como é o povo
E segundo as ideias que ele faz,
És quem lhe não vem dar nada de novo –
Umas barbas com S. Pedro lá por trás.
É difícil tratar-te em verso ou prosa,
Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,
Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser
E a alma mais humilde é clamorosa
De qualquer coisa que se possa ver,
Em sonho até, qual se estivesse perto.
Olha, eu confesso
Que nunca escreveria
Este vago poema, em que me apresso
Só para me ver livre do teu nada,
Se não fosse para dar um cunho
A este livro da trilogia
(Santo António, S. João, S. Pedro –
De popular, que bem que soa!)
Mas porque diabo de intuição errada
É que vieste parar a Junho
E a Lisboa?
Isto aqui ainda tem
Um sorriso que lhe fica bem,
Que até, até
No teu dia,
(Ó estupor velho
Como um chavelho,)
Nas ruas
O povo anda com alegria,
É fé,
Não em ti nem nas barbas tuas
Mas no que a alegria é.
Olha, acabei.
Que mais dizer-te, não sei.
Espera lá, olha
Roma, fingindo que viceja,
Lentamente se desfolha.
Teu último gesto seja,
Um gesto volvente e mudo.
Se tens poder milagroso,
Se essas chaves abrem tudo
Deixa esse céu lastimoso.
Deixa de vez esse céu,
Desce até à humanidade
E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,
As portas do Inferno, e da Verdade.
9.6.1935.
24 de jun. de 2021
22 de jun. de 2021
Por si :: Sandra Niskier Flanzer
que aprenda com o sol:
ele é fogo: por força de si, se impõe.
Mas nasce e morre todos os dias,
ilumina o que vinga e depois esquece
e, a um só tempo, sabe sumir e se pôr.
FLANZER, Sandra Niskier. "Por si". In:_____. O quinto (dos infernos). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.
Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector
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