1 de nov. de 2021

Jorge Luis Borges: o Remorso (El remordimiento)

Cometi o pior dos pecados

Que um homem pode cometer. Não fui

Feliz. Que os glaciares do esquecimento

Me arrastem e me percam, desapiedados.

Meus pais me engendraram para o jogo

Arriscado e formoso da vida,

Para a terra, a água, o ar, o fogo.

Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida

Não foi sua jovem vontade. Minha mente

Se aplicou às simétricas porfias

Da arte, que entretece naderias.

Legaram-me coragem. Não fui valente.

Não me abandona. Sempre está a meu lado

A sombra de ter sido um desgraçado

BORGES, Jorge Luís. "La moneda de hierro". In: Obras completas II: 1975-1985. Buenos Aires, 1989.


El remordimiento

He cometido el peor de los pecados

Que un hombre puede cometer. No he sido

Feliz. Que los glaciares del olvido

Me arrastren y me pierdan, despiadados.

Mis padres me engendraron para el juego

Arriesgado y hermoso de la vida,

Para la tierra, el agua, el aire, el fuego.

Los defraudé. No fui feliz. Cumplida

No fue su joven voluntad. Mi mente

Se aplicó a las simétricas porfías

Del arte, que entreteje naderías.

Me legaron valor. No fui valiente.

No me abandona. Siempre está a mi lado

La sombra de haber sido un desdichado.





21 de out. de 2021

Exausto de Adélia Prado


Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

18 de out. de 2021

Ao pé de sua criança :: Pablo Neruda

Helene Schjerfbeck

O pé da criança ainda não sabe que é pé,

e quer ser borboleta ou maçã.


Mas depois os vidros e as pedras,

as ruas, as escadas,

e os caminhos de terra dura

vão ensinando ao pé que não pode voar,

que não pode ser fruta redonda num ramo.


Então o pé da criança

foi derrotado, caiu

na batalha,

foi prisioneiro,

condenado a viver num sapato.


Pouco a pouco sem luz

foi conhecendo o mundo à sua maneira,

sem conhecer o outro pé, encerrado,

explorando a vida como um cego.

............

El pie del niño aún no sabe que es pie,

y quiere ser mariposa o manzana.


Pero luego los vidrios y las piedras,

las calles, las escaleras,

y los caminos de la tierra dura

van enseñando al pie que no puede volar,

que no puede ser fruto redondo en una rama.

El pie del niño entonces

fue derrotado, cayó

en la batalla,

fue prisionero,

condenado a vivir en un zapato.


Poco a poco sin luz

fue conociendo el mundo a su manera,

sin conocer el otro pie, encerrado,

explorando la vida como un ciego.


Aquellas suaves uñas

de cuarzo, de racimo,

se endurecieron, se mudaron

en opaca substancia, en cuerno duro,

y los pequeños pétalos del niño

se aplastaron, se desequilibraron,

tomaron formas de reptil sin ojos,

cabezas triangulares de gusano.

Y luego encallecieron,

se cubrieron

con mínimos volcanes de la muerte,

inaceptables endurecimientos.


Pero este ciego anduvo

sin tregua, sin parar

hora tras hora,

el pie y el otro pie,

ahora de hombre

o de mujer,

arriba,

abajo,

por los campos, las minas,

los almacenes y los ministerios,

atrás,

afuera, adentro,

adelante,

este pie trabajó con su zapato,

apenas tuvo tiempo

de estar desnudo en el amor o el sueño,

caminó, caminaron

hasta que el hombre entero se detuvo.


Y entonces a la tierra

bajó y no supo nada,

porque allí todo y todo estaba oscuro,

no supo que había dejado de ser pie,

si lo enterraban para que volara

o para que pudiera

ser manzana.


5 de out. de 2021

Destino de poeta :: Octavio Paz

Palavras? Sim, de ar

e perdidas no ar.

Deixa que eu me perca entre palavras,

deixa que eu seja o ar entre esses lábios,

um sopro erramundo sem contornos,

breve aroma que no ar se desvanece.


Também a luz em si mesma se perde.

PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo. Transblanco (em torno a Blanco de Octavio Paz. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

..................................

 ¿Palabras? Sí, de aire,

y em el aire perdidas.

Déjame que me pierda entre palavras,

déjame ser el aire en unos labios,

un soplo vagabundo sin contornos,

breve aroma que el aire desvanece.


También la luz en sí misma se pierde.



20 de set. de 2021

A mão :: Carlos Drummond de Andrade

Entre o cafezal e o sonho o garoto pinta uma estrela dourada na parede da capela, E nada mais resiste à mão pintora. A mão cresce e pinta o que não é para ser pintado mas sofrido. A mão está sempre compondo módul-murmurando o que escapou à fadiga da Criação e revê ensaios de formas e corrige o oblíquo pelo aéreo e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos. A mão cresce mais e faz do mundo como-se-repete o mundo que telequeremos. A mão sabe a cor da cor e com ela veste o nu e o invisível. Tudo tem explicação por que tudo tem (nova) cor. Tudo existe por que foi pintado à feição de laranja mágica, não para aplacar a sede dos companheiros, principalmente para aguçá-la até o limite do sentimento da Terra domicílio do homem. Entre o sonho e o cafezal entre guerra e paz entre mártires, ofendidos, músicos, jangadas, pandorgas, entre os roceiros mecanizados de Israel, a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil entre o amor e o ofício eis que a mão decide: Todos os meninos, ainda os mais desgraçados, sejam vertiginosamente felizes como feliz é o retrato múltiplo verde-róseo em duas gerações da criança que balança como flor no cosmo e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente em seu poder de encantação. Agora há uma verdade sem angústia mesmo no estar-angustiado. O que era dor é flor, conhecimento plástico do mundo. E por assim haver disposto o essencial, deixando o resto aos doutores de Bizâncio, bruscamente se cala e voa para nunca-mais a mão infinita a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari. Carlos Drummond de Andrade, em homenagem ao pintor Candido Portinari que havia deixado de viver em 6 de fevereiro de 1962. Do livro Lição de coisas (1962). In Carlos Drummond de Andrade. Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1983.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...