7 de fev. de 2012

A marca da solidão de Heloisa Seixas


No côncavo das palmas, o homem segurou com cuidado o gatinho. Observou-o enquanto ele se debatia. Mexia as patinhas dianteiras e traseiras, mas sem muita convicção, apenas mostrando disposição de brincar e não dando qualquer sinal de impaciência ou alarme. Assim, entre suas mãos, tão pequeno que era, com a barriga para cima, lembrava um bebê que, deitado no berço, agitasse mãos e pés tentando alcançar algum móbile suspenso. O homem sorriu.

Em seguida, sentando-se no sofá, acariciou o corpo do gato, pouco maior do que sua mão. O bichinho acalmou-se, de repente. Ficou imóvel, os olhos quase cerrados, parecendo saborear o momento de ternura. Tão pequeno e o animal já parecia dar valor a uma carícia. Era natural, pensou o homem. Afinal, fora abandonado na rua. E agora, por entre suas mãos calosas, aquele ser tão frágil era uma presença inesperada, subversiva, surpreendente. Os gatos precisam ser acariciados quando pequenos, lembrou ele, principalmente se tiverem sido separados da mãe muito cedo. Caso contrário, quando adultos podem tornar-se medrosos, tímidos ou mesmo agressivos.

E de repente o sorriso do homem cessou.

Por associação de ideias, pensou em um livro que acabara de ler, um livro antigo, esquecido havia muito, e que por acaso apanhara outro dia na estante. Era um livro de José Carlos de Oliveira, chamado O pavão desiludido, em que o cronista relatava os horrores de sua infância. Havia uma passagem, logo no início, em que Carlinhos de Oliveira contava como ele, menino miserável, faminto e cheio de vermes, um dia, apanhando água na bica, recebera da irmã um presente: um arco-íris. ''Olhei e vi o arco-íris na água aberta em leque sob o céu azul. O sol devia estar criando uma ilusão, mas o que eu via era o milagre da multiplicação das lágrimas coloridas onde antes só havia lágrimas''. Mais adiante, o cronista falava de como ficara marcado pela infância difícil e sobre a relação terrível que tivera com a mãe: ''Quando se cria um abismo assim entre duas pessoas da mesma família, sendo uma delas criança, mais tarde se verifica que nem todo o amor do mundo daria para encher o buraco''.

E, voltando a olhar o gatinho, que agora dormia, o homem sorriu um sorriso triste. Assim como Carlinhos, ele próprio tivera uma infância infeliz. E assim como aquele filhote que tinha nas mãos, também fora deixado para trás, num certo sentido. Para o pequeno animal, ainda havia salvação. Mas para ele - como fora talvez para o escritor - era tarde.

Suspirou. Sabia bem. Trazia uma nódoa indelével, o estigma daqueles a quem faltou, na hora exata, a carícia necessária. Trazia, no corpo e na alma, a marca da solidão.

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