16 de mai. de 2012

A Máquina do Mundo de Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa, 
e no fecho da tarde um sino rouco 

se misturasse ao som de meus sapatos 
que era pausado e seco; e aves pairassem 
no céu de chumbo, e suas formas pretas 

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes 
e de meu próprio ser desenganado, 

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava 
e só de o ter pensado se carpia. 

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro 
nem um clarão maior que o tolerável 

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto, 
e pela mente exausta de mentar 

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada 
no rosto do mistério, nos abismos. 

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam 
a quem de os ter usado os já perdera 

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos 
os mesmos sem roteiro tristes périplos, 

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito 
da natureza mítica das coisas, 

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão 
atestasse que alguém, sobre a montanha, 

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo: 
"O que procuraste em ti ou fora de 

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo, 
e a cada instante mais se retraindo, 

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência 
sublime e formidável, mas hermética, 

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular, 
que nem concebes mais, pois tão esquivo 

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla, 
abre teu peito para agasalhá-lo.” 

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora, 
o que pensado foi e logo atinge 

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados, 
e as paixões e os impulsos e os tormentos 

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais 
e chega às plantas para se embeber 

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar, 
na estranha ordem geométrica de tudo, 

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos 
monumentos erguidos à verdade: 

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce 
no caule da existência mais gloriosa, 

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto, 
afinal submetido à vista humana. 

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso, 
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, 

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa 
que entre os raios do sol inda se filtra; 

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem 
a de novo tingir a neutra face 

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele 
habitante de mim há tantos anos, 

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava 
semelhante a essas flores reticentes 

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora 
apetecível, antes despiciendo, 

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta 
que se abria gratuita a meu engenho. 

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa, 
e a máquina do mundo, repelida, 

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera, 
seguia vagaroso, de mãos pensas. 

Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

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