foto: António Passaporte
Porto, 6 de Outubro 1919 - Lisboa, 2 de Julho de 2004
Havia em minha casa uma criada, chamada Laura, de quem eu gostava muito. Era uma mulher jovem, loira, muito bonita. A Laura ensinou-me a «Nau Catrineta» porque havia um primo meu mais velho a quem tinham feito aprender um poema para dizer no Natal e ela não quis que eu ficasse atrás... Mas há mais encontros, encontros fundamentais com a poesia: a recitação da Magnífica, nas noites de trovoada, por exemplo. Quando éramos um pouco mais velhos, tínhamos uma governanta que nessas noites queimava alecrim, acendia uma vela e rezava. Era um ambiente misto de religião e magia... E de certa forma nessas noites de temporal nasceram muitas coisas. Inclusivamente, uma certa preocupação social e humana ou a minha primeira consciência da dureza da vida dos outros, porque essa governanta dizia: «Agora andam os pescadores no mar, vamos rezar para que eles cheguem a terra.» E essa sensação dos homens, nos barcos, a lutar contra uma tempestade de que os ecos... Batiam as janelas, as portadas de madeira. Havia temporais terríveis nesse tempo! Eu vivia no Porto, para os lados do mar, num sítio chamado Campo Alegre, e chegavam-nos os ventos do mar, o vento Sul, e as portadas batiam, às vezes abria-se uma janela de par em par e tinha-se a impressão visual, dentro de casa, de um mar completamente louco, em que os barcos... E essa visão do pescador que tinha de chegar à praia e podia ser devorado pelas ondas... E ao mesmo tempo as palavras da Magnífica criavam uma espécie de espaço de salvação e de esplendor no meio do temporal, no meio do caos...
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