Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
eu poderia escrever sobre os problemas do tempo em que vivemos
mas só poderia falar deles a partir do meu, do meu tempo,
des-datando, que é o modo como escovo o fato dessas imagens
que, aos que tomam este caminho,
lhes falam constantemente da sua irrealidade. O mundo.
Mas qual? No meu
combatem-se
existentes poderosos contra reais talvez inviáveis — o «é as-
sim» dos cínicos contra o «tenhamos um amor comum», de
Eckhart.
Basta atravessar a rua para encontrar o nosso tempo, basta-
-me voltar atrás para me encontrar no meu. Algures, no meu
corpo, entre atravessar e voltar atrás, houve o embate das
imagens.
Da televisão que vejo ao texto que escrevo, a distância é
incomensurável.
Não preciso carregar no botão para encontrar nos textos
que eu der a ler, inapagáveis, imagens próprias e não eféme-
ras — se os olhos de quem os ler forem também inapagáveis.
No tracejado desse inapagável, formam-se olhos que são es-
pelhos para as imagens reais de todos o territórios nómadas
que criamos, e vamos trocando entre eles e nós.
Lembro-me, a propósito de imagens, da frase de uma can-
ção que ouvi há anos:
«se eu fosse aquela em quem tu pensas, a quem tu tens
amor...»
Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
que ouço na rua as patas dos cavalos; que vou sair;
que vou pentear-me;
que vou vestir o casaco;
que está um dia nublado;
que há tantos outros (não os outros) que existem, querem ser reais,
e não morrer.
Afirmo que ir sair e não querer morrer me parece, de
súbito, uma espécie de constituição das imagens como se ne-
las houvesse uma certa matéria consciente e imperecível para
lá do corpo que a si própria perguntasse de que modo trazer o
que é vida corrente para o invisível não tomado pela morte.
Não posso perguntar. A escrever tenho de saber, na maior
das certezas.
Inquérito às quatro confidências. Relógio D´água, 1996
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