david graham
Apareceu um orate de pele escura, raça negra, branca cafetã impoluta. Toda minha atenção centrou-se nele e no seu ingrávido edifício sonoro. Nunca tinha visto trejeitos tão airados e tão sobriamente compassados ao ritmo de umas vibrações acústicas, inaudíveis para mim, que se apoderavam com grande energia do ambiente e que pareciam reproduzir, no ar entrecortado pelos gestos, uma história.
Imaginei que o orate só possuía uma história e que esta falava de um tronco triste alçado como mastro. Falava dele mesmo e dos dias em que lhe dominaram as ânsias de aventura. O orate negro tinha viajado a terras longínquas e, em seu périplo, foi apropriando-se de fragmentos de histórias que dissimuladamente havia escutado. Com todos estes retalhos foi compondo o romance airado e musical de sua vida: uma história que, com ritmo sincopado e artimanhas de mímico, vendia diariamente como um sonho a um público sempre devotado e fiel, ali em Xemaá-el-Fná.
Era a história ou o resumo fictício do que tinha sido sua vida. Uma vida sintetizada em quatro gestos que clamavam ao céu e em quatro vibrações acústicas e rítmicas de voz cor fraque branco de músico de jazz. Voz de orate negro. Na verdade aquela era toda uma voz de cor.
Enrique Vila-Matas. "La fuga en camisa". In. Recuerdos inventados. Barcelona: Anagrama, 1994 [originalmente publicado em Una casa para siempre] Tradução de Conrado Falbo
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