30 de jun. de 2013

Tenho uma folha branca de ANA CRISTINA CESAR



Tenho uma folha branca

e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma cama branca

e limpa à minha espera:

mudo convite:

tenho uma vida branca

e limpa à minha espera.

29 de jun. de 2013

Eucanaã Ferraz, "Carícia"


Chagall, 1931

Demore-se no carinho,
de modo que no rosto do outro
vá a mão como se não fora
voltar. Repita,

demorando-se mais,
de modo que a mão descanse
naquele rosto, como se,
e se esqueça de que.

Repita, demore-se no carinho
como se a mão desse adeus,
agarrada ao rosto que se vai.
Outra vez: repita,

demorando-se mais
e mais, como se a mão bebesse
daquele rosto para, saciada, dormir
ali mesmo, ao pé da fonte.

Como rasurar a paisagem :: Ana Cristina César

a fotografia é um tempo morto
fictício retorno à simetria
secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta

28 de jun. de 2013

Palavras aladas de Marina Colassanti

Madeleine Colaço 

Silêncio era a coisa de que aquele rei mais gostava. E de que, a cada dia, mais parecia gostar. Qualquer ruído, dizia, era faca em seus ouvidos.
Por isso, muito jovem ainda, mandou construir altíssimos muros ao redor do castelo. E logo, não satisfeito, ordenou que por cima dos muros, e por cima das torres, por cima dos telhados e dos jardins, passasse imensa redoma de vidro. Agora sim, nenhum som entrava no castelo.O mundo podia gritar lá fora, que dentro nada se ouviria. E mesmo a tempestade fez-se muda, sem que rolar de trovão ou correr de vento perturbassem a serenidade das sedas.
-Ouçam que preciosidade!- dizia o rei.E toda a corte se calava ouvindo embevecidamente coisa alguma.
Mas se os sons não podiam entrar, verdade é que também não podiam sair. Qualquer palavra dita, qualquer espirro, soluço, canto, ficava vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe fossem de valia fresta de janela ou porta esquecida aberta. Pois se ainda era possível escapar às paredes, nada os libertava da redoma.
Aos poucos, tempo passando sem que ninguém lhe ouvisse os passos, palavras foram se acumulando pelos cantos, frases serpentearam na superfície dos móveis, interjeições salpicaram as tapeçarias, um miado de gato arranhou os corredores.
E tudo teria continuado assim, se um dia, no exato momento em que sua majestade recebia um embaixador estrangeiro, não atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de cozinheiro que, sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixador depenar, bem depressa, uma galinha.
Mais do que os ouvidos, a frase feriu o orgulho do rei. Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e para sempre trancados no mais profundo calabouço.
Durante dias os cortesãos empenharam-se naquele novo esporte que os levava a sacudir cortinas e a rastejar sob os móveis. A audição certeira abatia exclamações em pleno vôo, algemava rimas, desentocava cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento de acentos. Um marquês de monóculo fez montinhos de monossílabos. E houve até quem garantisse ter apanhado entre os dedos o delicado não de uma donzela. Enfim, divertiram-se tanto, tão entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a Temporada Anual de Caça à Palavra.
De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de seus sons, enchia-se o calabouço de conversas. A tal ponto que o momento chegou em que ali não cabia mais sequer o quase silêncio de uma vírgula. E o Mordomo Real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para aposentos esquecidos do primeiro andar.
Foi portanto por acaso que o rei passou frente a um desses cômodos. E passando ouviu um murmúrio, rasgo de conversa. Pronto a reclamar, já a mão pousava na maçaneta, quando o calor daquela voz o reteve. E inclinado à fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem, de joelhos talvez, derramava sua paixão aos pés da amada.
A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma ele reconheceu com surpresa sua própria voz, sua jovem paixão. Era sua aquela conversa de amor há tantos anos trancada. Fio da longa meada do passado, vinha agora envolvê-lo, religá-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.
-Que se abram as portas!- gritou comovido, pela primeira vez gostando do seu grito, ele que sempre havia falado tão baixo. E escancarou os batentes à sua frente.
-Que se derrube a redoma!- lançou então o rei com todo o poder de seus pulmões. - Que se abatam os muros!
E desta vez vai o grito por entre o estilhaçar, subindo, planando, pássaro-grito que no azul se afasta, trazendo atrás de si em revoada frases, cantigas, epístolas, ditados, sonetos, epopéias, discursos e recados, e ao longe maritacas! Um bando de risadas. Sons que no espaço se espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade se vão.

COLASANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento. São Paulo: Global, 1999.

Crista-de-peru, Acalifa, Rabo-de-macaco












27 de jun. de 2013

Narciso de Manuel António Pina


John William Waterhouse.

Quando me dizes "Vem", já eu parti

e já estou tão próximo de ti

que sou eu quem me chama e quem te chama

e é o meu amor que em ti me ama.

Se me olhas sou eu que me contemplo

longamente através do teu olhar

e moro em ti e sou eu o lugar

e demoro-me em ti e sou o tempo.

Eu sou talvez aquilo que me falta

(a alma se sou corpo, o corpo se sou alma)

em ti, e afogo-me na tua vida

como na minha imagem desmedida:

Sol, Lua, água, ouro,

horizontalidade, concordância,

indiferente ordem da infância,

união conjugal, morte, repouso.

26 de jun. de 2013

Lembrança do mundo antigo - Carlos Drummond de Andrade


Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.



As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

24 de jun. de 2013

Foguete canta Maria Bethania


Tantas vezes eu soltei foguete
Imaginando que você já vinha
Ficava cá no meu canto calada
Ouvindo a barulheira
Que a saudade tinha
É como diz João Cabral de Mello Neto
Um galo sozinho não tece uma manhã
Senti na pele a mão do teu afeto
Quando escutei o canto de acauã
A brisa veio feito cana mole
Doce, me roubou um beijo
Flor de querer bem
Tanta lembrança este carinho trouxe
Um beijo vale pelo que contém


Tantas vezes eu soltei foguete
Imaginando que você já vinha
Ficava cá no meu canto calada
Ouvindo a barulheira
Que a saudade tinha
Tirei a renda da naftalina
Forrei cama, cobri mesa
E fiz uma cortina
Varri a casa com vassoura fina
Armei a rede na varanda
Enfeitada com bonina
Você chegou no amiudar do dia
Eu nunca mais senti tanta alegria
Se eu soubesse soltava foguete
Acendia uma fogueira
E enchia o céu de balão
Nosso amor é tão bonito, tão sincero
Feito festa de São João


http://letras.mus.br/maria-bethania/569723/

Compositor: J. Velloso / Roberto Mendes

23 de jun. de 2013

Canção dos que partem - Luis Enrique Belmonte (Caracas, 1971)


Os que partem a cantarolar uma canção
a deixar que a luz ocupe seu lugar nas esquinas,
nos rostos que chegam,
nas mãos que palpam o espaço habitável
Os que se aproximam do horizonte
procurando pássaros que adejam na escuridão
Os que no seu andar desprendem gravetos, espinhos,
cascas que assinalam o sentido
do que não puderam dizer a tempo
quando era preciso dizê-lo.
Os que se vão não devem olhar o rasto do seu passo
senão a cintilação da terra prometida
que não é mais que o lampejo de seus próprios corpos
a trafegar caminhos no mais côncavo da noite.
Escutemos a canção
sobre os telhados de povos afantasmados,
nos gonzo de portas entreabertas,
nos sótãos do vento.
É a canção que anuncia aos que chegam
e torna mais leve a travessia dos que partem.

.........................
Los que se van tarareando una canción
dejando que la luz ocupe su lugar en las esquinas,
en los rostros que llegan,
en las manos que tantean el espacio habitable.
Los que se van arrimando al horizonte
buscando pájaros que aletean en la oscurana.
Los que en su marcha desprenden astillas, espinas,
cáscaras que señalan el sentido
de lo que no pudieron decir a tiempo
cuando era justo decirlo.
Los que se van no deben mirar la estela de su paso
sino el relumbre de la tierra prometida
que no es más que el destello de sus propios cuerpos
trasegando caminos en lo más cóncavo de la noche.
Escuchemos la canción
sobre los tejados de pueblos afantasmados,
en los goznes de puertas entreabiertas,
en los áticos del viento.
Es la canción que anuncia a los que llegan
y hace más ligera la travesía de los que parten.


Luis Enrique Belmonte. Nasceu em Caracas, em 1971. É médico cirurgião (UCV), especializou-se em Bioética na Universidade Ramón Llull e em História das Ciências na Universidade Autónoma de Barcelona. Recebeu diferentes reconhecimentos literários, entre eles o Prêmio de Poesia Fernando Paz Castillo (1996), por Corpo baixo lâmpada; o Prêmio Adonais (1998), convocado pela editorial Rialp de Madri, por Inútil registo; e o Prêmio de Poesia da IV Bienal de Literatura Mariano Picón Salas (2005), por O encanto.

22 de jun. de 2013

As Abelhas de Vinicius de Moraes


A abelha-mestra
E as abelhinhas
Estão todas prontinhas
Para ir para a festa
Num zune-que-zune
Lá vão pro jardim
Brincar com a cravina
Valsar com o jasmim
Da rosa pro cravo
Do cravo pra rosa
Da rosa pro favo
E de volta pra rosa








21 de jun. de 2013

Com as rosas de Juan Ramón Jimenez

Klimt
Não, esta doce tarde
não poderei ficar;
esta tarde livre
tenho que ir na aragem.

Na aragem que ri
ao abrir das árvores,
amores aos milhares,
profunda, ondulante.

Esperam-me as rosas,
banhando sua carne.
Não ponha limites;
não quero ficar-me.

20 de jun. de 2013

Goeldi

“ O que me interessava eram os aspectos estranhos do Rio suburbano, com postes de luz enterrados até a metade na areia, urubu na rua, móveis na calçada, enfim, coisas que deixariam besta, qualquer europeu recém chegado. Depois descobri os pescadores, e toda madrugada ia para o mercado ver o desembarque do peixe e desenhava sem parar.” 1957, Goeldi