2 de out. de 2015

INFÂNCIA Paulo Mendes Campos

Há muito, arquiteturas corrompidas,
Frustrados amarelos e o carmim
De altas flores à noite se inclinaram
Sobre o peixe cego de um jardim .
Velavam o luar da madrugada
Os panos do varal dependurados;
Usávamos mordaças de metal
Mas os lábios se abriam se beijados.
Coados em noturna claridade ,
Na copa , os utensílios da cozinha
Falavam duas vidas diferentes ,
Separando da vossa a vida minha .
Meu pai tinha um cavalo e um chicote ;
No quintal dava pedra e tangerina ;
A noite devolvia o caçador
Com a perna de pau , a carabina .
Doou-me a pedra um dia o seu suplício .
A carapaça dos besouros era dura
Como a vida — contradição poética —
Quando os assassinava por ternura .
Um homem é, primeiro , o pranto , o sal ,
O mal , o fel , o sol , o mar — o homem .
Só depois surge a sua infância-texto,
Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem .
A morte é antes , feroz lembrança
Do que aconteceu, e nada mais
Aconteceu; o resto é esperança .
O que comigo se passou e passa
É pena que ninguém nunca o explique:
Caminhos de mim para mim , silvados,
Sarçais em que se perde o verde Henrique.
Há comigo , sem dúvida , a aurora ,
Alba sangüínea , menstruada aurora ,
Marchetada de musgo umedecido,
Fauna e flora , flor e hora , passiflora,

Espaço afeito a meu cansaço , fonte ,
Fonte , consoladora dos aflitos ,
Rainha do céu , torre de marfim ,
Vinho dos bêbados , altar do mito .
Certeza nenhuma tive muitos anos ,
Nem mesmo a de ser sonho de uma cova ,
Senão de que das trevas correria
O sangue fresco de uma aurora nova .
Reparte-nos o sol em fantasias
Mas à noite é a alma arrebatada.
A madrugada une corpo e alma
Como o amante unido à sua amada .

O melhor texto li naquele tempo ,
Nas paredes , nas pedras , nas pastagens ,
No azul do azul lavado pela chuva ,
No grito das grutas , na luz do aquário ,
No claro-azul desenho das ramagens ,
Nas hortaliças do quintal molhado
( Onde também floria a rosa brava )
No topázio do gato , no be-bop
Do pato , na romã banal , na trava
Do caju , no batuque do gambá ,
No sol-com-chuva, já quando a manhã
Ia lavar a boca no riacho .
Tudo é ritmo na infância , tudo é riso ,
Quando pode ser onde , onde é quando .

A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Em nossa mão à tarde ela comia
O sal e a palha da ternura humana .
O cavalo Joaquim era vermelho
Com duas rosas brancas no abdômen;
À noite o vi comer um girassol ;
Era um cavalo estranho feito um homem .
Tínhamos pombas que traziam tardes
Meigas quando voltavam aos pombais ;
Voaram para a morte as pombas frágeis
E as tardes não voltaram nunca mais .
Sorria à toa quando o horizonte
Estrangulava o grito do socó
Que procurava a fêmea na campina .
Que vida a minha vida ! E ria só .

Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada !
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta , que circunda
A escuridão como os braços de um moinho .

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