29 de out. de 2016

Conto :: JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA

Foi assim: à mesa do café, o pai disse que ia ao entreposto carregar o caminhão. Eu perguntei se podia ir; ele disse, Pode, vamos! Luiz, que tinha ido lá uma vez e voltara aborrecido, Não tem nada pra fazer, ficou me olhando, incrédulo, seu silêncio dizia, Você vai se arrepender, e deu de ombros. Irritava-se, sempre, quando eu me recusava a aprender o que ele, para o meu bem, queria me ensinar. Talvez porque, eu já pensava, a gente aprende mais indo até as coisas do que com as palavras dos outros. A mãe sorriu, reconhecendo um tanto dela em mim, muito além da cor de seus olhos e da curva de suas sobrancelhas.

E, então, fomos, eu e o pai, no caminhão a trovejar pelas ruas, a carroceria vazia, o dia menino, o sol ainda preguiçoso sobre as casas. No banco, entre nós, nada, só uma fatia de espaço, para o nosso conforto. Não precisávamos de mais: as nossas presenças se tocavam. A gente ali, sendo eu e ele, pai e filho na recém-nascida manhã.

Não demorou, chegamos ao entreposto, enorme depósito de cereais junto à rodovia. Dali dava para ver nossa cidade lá embaixo, embutida na planície verde. À beira do entreposto, caminhões aguardavam a hora de serem carregados. O pai estacionou, fomos lá dentro – ele pegando o caminho do escritório, eu atrás, desorientado com aquela grandeza. Sacas e mais sacas (de arroz, café, feijão, milho) formando imensas pilhas que atingiam o teto; dezenas de homens musculosos, sem camisa, pano enrolado na cabeça como turbante, transportando as mercadorias de um lado para o outro. O chão coberto por uma película de pó branco, cascas de amendoim, linhas de estopa. O mundo ali, numa maneira de ser que eu desconhecia – e que se mostrava para mim como o pássaro entre a ramagem da árvore.

No escritório, um cercado de vidro no fundo do entreposto, sentamos num banco de madeira e aguardamos a nossa vez. O pai quase sorria, ele no seu lugar de lucro e contentamento; eu, ao seu lado, assistia ao vaivém que os carregadores teciam com seus pés naquele lugar imenso. Conversavam, gritavam, riam alto, como se levassem às costas asas e não pesadas cargas. Um e outro cantavam, os braços brilhando de suor, as faces sujas de poeira. Distraí-me: com aquilo tudo à minha frente, não havia como ficar em mim, era uma obrigação me entregar.

Assim, quando me dei conta, o pai me pegava pelo braço, Vem, e eu fui, obediente, mas ainda voltando-me para trás, querendo mais, lá no fundo um guindaste começava a se mover. Era o fim, mas o fim apenas da primeira parte. Porque o pai, depois de alguns minutos, atendendo ao sinal de um homem, ligou o caminhão e se pôs a entrar, devagarinho, no armazém. Logo os carregadores começaram a trazer sacas e organizá-las num canto da carroceria.

Eu desci da boleia, queria me gastar naquela observação. Atravessei o entreposto procurando um lugar só meu, para ficar comigo, vendo o que eu via – aquele desenho de vidas. Achei uma pequena pilha de sacas de amendoim. Subi ao seu topo, sentei-me. Nenhum véu, tudo nu adiante, para mim. E ainda tinha o cheiro: cheiro cru, de grão de terra transformado em grão de alimento, cheiro demais de vida, de vida brava, senhora das mudanças. De repente, senti: era tanta – e silenciosa – a minha alegria que uma ponta de tristeza já se insinuava. Deixei que viessem, as duas, e me confundissem, eu queria sentir o que sentia àquela hora, uma força presente e a outra futura. O instante e a sua sombra.

Foi assim. Eu cheguei em casa sendo outro, excitado de quietude, maior na minha miudeza. Luiz me viu daquele tamanho e não ligou para a nossa diferença. Fui para o nosso quarto, sentei-me em frente à janela, eu me tornando (também) a vista lá de fora. Desejava, febrilmente, que continuasse tudo daquele jeito: que as coisas, no seu ser apenas, me espantassem sempre. Era o vital para mim: a vida com seus visíveis movimentos. E a gente, cada um no seu posto, nem dentro, nem fora. Entre.


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