6 de out. de 2016

Cora Coralina, Quem É Você?

Sou mulher como outra qualquer. 
Venho do século passado 
e trago comigo todas as idades. 

Nasci numa rebaixa de serra 
Entre serras e morros. 
“Longe de todos os lugares”. 
Numa cidade de onde levaram 
o ouro e deixaram as pedras. 

Junto a estas decorreram 
a minha infância e adolescência. 

Aos meus anseios respondiam 
as escarpas agrestes. 
E eu fechada dentro 
da imensa serrania 
que se azulava na distância 
longínqua. 

Numa ânsia de vida eu abria 
O vôo nas asas impossíveis 
do sonho. 

Venho do século passado. 
Pertenço a uma geração 
ponte, entre a libertação 
dos escravos e o trabalhador livre. 
Entre a monarquia caída e a república 
que se instalava. 

Todo o ranço do passado era presente. 
A brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo. 
Os castigos corporais. 
Nas casas. Nas escolas. 
Nos quartéis e nas roças. 
A criança não tinha vez, 
Os adultos eram sádicos 
aplicavam castigos humilhantes. 

Tive uma velha mestra que já 
havia ensinado uma geração 
antes da minha. 
Os métodos de ensino eram 
antiquados e aprendi as letras 
em livros superados de que 
ninguém mais fala. 

Nunca os algarismos me 
entraram no entendimento. 
De certo pela pobreza que marcaria 
Para sempre minha vida. 
Precisei pouco dos números. 

Sendo eu mais doméstica do 
que intelectual, 
não escrevo jamais de forma 
consciente e racionada, e sim 
impelida por um impulso incontrolável. 
Sendo assim, tenho a 
consciência de ser autêntica. 

Nasci para escrever, mas, o meio, 
o tempo, as criaturas e fatores 
outros, contra-marcaram minha vida. 

Sou mais doceira e cozinheira 
Do que escritora, sendo a culinária 
a mais nobre de todas as Artes: 
objetiva, concreta, jamais abstrata 
a que está ligada à vida e 
à saúde humana. 

Nunca recebi estímulos familiares para ser literata. 
Sempre houve na família, senão uma 
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada 
a essa minha tendência inata. 
Talvez, por tudo isso e muito mais, 
sinta dentro de mim, no fundo dos meus 
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo. 
Sobrevivi, me recompondo aos 
bocados, à dura compreensão dos 
rígidos preconceitos do passado. 

Preconceitos de classe. 
Preconceitos de cor e de família. 
Preconceitos econômicos. 
Férreos preconceitos sociais. 

A escola da vida me suplementou 
as deficiências da escola primária 
que outras o destino não me deu. 

Foi assim que cheguei a este livro 
Sem referências a mencionar. 

Nenhum primeiro prêmio. 
Nenhum segundo lugar. 

Nem Menção Honrosa. 
Nenhuma Láurea. 

Apenas a autenticidade da minha 
poesia arrancada aos pedaços 
do fundo da minha sensibilidade, 
e este anseio: 
procuro superar todos os dias 
Minha própria personalidade 
renovada, 
despedaçando dentro de mim 
tudo que é velho e morto. 

Luta, a palavra vibrante 
que levanta os fracos 
e determina os fortes. 

Quem sentirá a Vida 
destas páginas... 
Gerações que hão de vir 
de gerações que vão nascer. 



In Meu Livro de Cordel, 1998 


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