Sentas-te à beira da noite
para fazer este poema,
este poema não é teu,
é da tinta e do papel.
Mas o que é teu, afinal?
Idéia de propriedade!
Nada é teu, nem de ninguém.
Teu passado não é teu,
nem sabes o que ele é.
Na neblina do passado
quase cego tu navegas,
mas um braço te pegou,
te agarra, não larga mais.
- Este braço não é teu. -
O presente não é teu,
presente já é passado,
tu falaste, voz sumiu,
ah! nem o eco ficou.
Mas o futuro? é de Deus,
e Deus não é de ninguém.
Também não és de ninguém.
Tudo vês e tudo tocas,
tudo cheiras, tudo ouves,
nada fica nos teus olhos,
nada fica na tua mão,
no teu ouvido, nariz.
Levaste a noite ao altar,
sei que a noiva não é tua,
sei que ela também não é
do noivo que a possuiu,
ela não é de ninguém;
nem é de ti que conheces
os encantos dessa noiva
muito melhor que seu noivo.
Coisa alguma te pertence,
também não és de ninguém,
viste o mundo do telhado,
cheiraste o mundo, viraste
o namorado do mundo,
namorado eternamente:
é melhor ficar assim,
casar dá muito trabalho,
põe um número na gente,
põe um título na gente,
não se pode mais andar
desenvolto como antes,
a gente tem que prender
toda atenção num objeto,
a gente fica pensando
que é dono dalguma coisa,
que possui móvel de carne...
Mas eu não sou de ninguém.
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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