31 de dez. de 2017

Paz :: Noemi Jaffe

Konstantinos Parthenis
quem visa aos fins e usa o meio como instrumento para chegar a eles esquece os sentidos do meio, que são inúmeros, processuais e mutantes. quem visa aos fins pode dizer que quer a paz, mas não pode e nem sabe querê-la, porque os fins não comportam a paz. porque o fim só tem um lado e para se chegar à paz é preciso ter muitos. a paz fica só no meio e não no fim.

Qualquer caminho leva a toda a parte :: Fernando Pessoa

Qualquer caminho leva a toda a parte.
Qualquer ponto é o centro do infinito.
E por isso, qualquer que seja a arte
De ir ou ficar, do nosso corpo ou espírito,
Tudo é estático e morto. Só a ilusão
Tem passado e futuro, e nela erramos.
Não ha estrada senão na sensação
É só através de nós que caminhamos.
Tenhamos pra nós mesmos a verdade
De aceitar a ilusão como real
Sem dar crédito à sua realidade.
E, eternos viajantes, sem ideal
Salvo nunca parar, dentro de nós,
Consigamos a viagem sempre nada
Outros eternamente, e sempre sós;
Nossa própria viagem é viajante e estrada.
Que importa que a verdade da nossa alma
Seja ainda mentira, e nada seja
A sensação, e essa certeza calma
De nada haver, em nós ou fora, seja
Inutilmente a nossa consciência?
Faça-se a absurda viagem sem razão.
Porque a única verdade é a consciência
E a consciência é ainda uma ilusão.
E se há nisto um segredo e uma verdade
Os deuses ou destinos que a demonstrem
Do outro lado da realidade,
Ou nunca a mostrem, se nada há que mostrem.
O caminho é de âmbito maior
Que a aparência visível do que está fora,
Excede de todos nós o exterior
Não para como as coisas, nem tem hora.
Ciência? Consciência? Pó que a estrada deixa
E é a própria estrada, sem a estrada ser.
É absurda a oração, absurda a queixa.
Resignar(-se) é tão falso como ter.
Coexistir? Com quem, se estamos sós?
Quem sabe? Sabe [...] que são?
Quantos cabemos dentro em nós?
Ir é ser. Não parar é ter razão.
11-10-1919
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. 
 - 95.

30 de dez. de 2017

LÍRIO ROXO :: António Gedeão (1906-1997)

Sylvia Svensson
Viajei por toda a Terra

Desde o Norte até ao sul;

Em toda a parte do Mundo

Vi mar verde e céu azul.



Em toda a parte vi flores

Romperem do pé do chão,

Universais, como as dores

Do mundo

Que em toda a parte se dão.



Vi sempre estrelas serenas

E as ondas morrendo em espuma.

Todo o Sol um Sol apenas,

E a Lua sempre só uma.



Diferente de quanto existe

Só a dor que me reparte,

Enquanto em mim morro triste,

Nasço alegre em toda a parte.

24 de dez. de 2017

Solidão: a crônica sem destino :: Roberto da Matta

(...) Temos muitos demônios e anjos interiores, mas um só palco e um só cenário dentro do qual eles podem se manifestar. Na pior situação, o corpo deve surgir uniformizado. Com as emoções mais dispares devidamente orquestradas e reveladas (ou não) por um corpo que é instrumento, ator e palco de tudo que passamos. A alma em frangalhos, o corpo sereno. Ajoelhado, como manda o figurino cristão. Ou o corpo em frangalhos e a alma serena no seu perpétuo dialogo com todos os seus demônios.
Outro dado estranho da solidão é não se sentir sozinho. Parece paradoxal, mas não é. Um torcedor do Fluminense no meio da torcida do Flamengo é a pessoa mais solitária do universo. Se o diálogo que você tem com os seus outros for positivo; se você fala com todas essas estranhas criaturas que estão dentro de você, inclusive e sobretudo com os seus mortos e doentes, a solidão lhe trás uma estranha paz. A paz de Deus é a melhor metáfora para esse sentimento que chega com a vida na sua plenitude. Numa conversa franca com você mesmo como bandido, como covarde, como ignorante, como invejoso, como sovina, como boquirroto, e como renegado. Você apara suas arestas, acerta suas contas e entra em contato com aquela outra letra que segue o "A" (do amor) e o "B" (da bênção). Refiro-me ao "C" que escreve coração e compaixão. Porque sem compaixão, amigos, não há serenidade nem só nem acompanhado. Amém.


O Estado de S.Paulo. 28 Setembro 2011

23 de dez. de 2017

Uma sépala, pétala :: Emily Dickinson

Alfred Knot 
Uma sépala, pétala, um espinho,
Numa simples manhã de verão_
Um frasco de orvalho _
Uma abelha ou duas _
Uma brisa_um bulício nas árvores _
E eis-me rosa!


21 de dez. de 2017

A sombra do avião :: Alice Sant’Anna

JOCK MACDONALD
a sombra do avião atravessando

a copa das árvores não carrega ninguém

que se despeça ou tome chá

água fervida em bule de ágata

na sombra do avião não há quem acorde

com os pés pendurados pra fora do colchão

não há ninguém que uma vez tenha se assustado

com o sangue do nariz

colorindo de vermelho a cama

em plena madrugada a sombra do avião

não faz sentir saudade nem pena

nem vontade de ir com ele e cruzar

a copa ou o quarto

pode apenas olhar pra baixo

quem vê a sombra do avião

na copa entre as asas.

19 de dez. de 2017

Gosto tanto de você :: ARMANDO FREITAS FILHO


Gosto tanto de você. Parece que o conheço desde que nasci, pois é tão parecido com a gente da minha família: modo de ser, de se vestir, de falar, de ficar indignado. Neste dia em que escrevo, bem que gostaria de lhe dar um abraço daqueles apertados e até um beijo. Mas se não vou até aí, é porque não consegui me desvencilhar do medo fóbico que tenho de viagens e de avião. De todo modo, a distância que me separa de você, eu a venço com a sua lembrança. Penso no que eu poderia dizer e ouvir, construo conversas imaginárias que me parecem reais, já que tenho de cor o som de sua voz acompanhada por sua gesticulação de dedos compridos e finos como os de Murilo Mendes. É como ouvir e ver uma música e sua regência dentro de mim. Com todo o afeto e saudade. 

18 de dez. de 2017

RETRATO :: Quinita Ribeiro Sampaio

Renoir 

Fui íntima um dia
mas como me distanciei
da menina do retrato.

Já habitei sua pele
mas dela nada mais sei
não conheço
a menina do retrato.

Como seria a sua voz
e o som do riso
e o seu choro?

Em vão busco em seu olhar
um vestígio, algum resto.

Um mistério opaco encerra
a menina no retrato.

Em que dia se rompeu
o elo que nos prendia?

Em que dia ela morreu?

De Aprendizagem Pelo Avesso (2012)

16 de dez. de 2017

Sou meu hóspede :: Mario Benedetti

Picasso 
Sou meu hóspede noturno
em doses mínimas
e uso a noite
para despojar-me
da modéstia
e outras vaidades
procuro ser tratado
sem os prejuízos
das boas-vindas
e com as cortesias
do silêncio
não coleciono padeceres
nem os sarcasmos
que deixam marca
sou tão-só
meu hóspede
e trago uma pomba
que não é sinal de paz
mas sim pomba
como hóspede
estritamente meu
no quadro-negro da noite
traço uma linha
branca
....

Soy mi huésped
Soy mi huésped nocturno
en dosis mínimas
y uso la noche
para despojarme
de la modestia
y otras vanidades

aspiro a ser tratado
sin los prejuicios
de la bienvenida
y con las cortesías
del silencio

no colecciono padeceres
ni los sarcasmos
que hacen mella

soy tan solo
mi huésped
y traigo una paloma
que no es prenda de paz
sino paloma

como huésped
estrictamente mío
en la pizarra de la noche
trazo una línea
blanca

Antologia poética. [tradução Julio Luiz Gehlen]. Rio de Janeiro: Record, 1988.

14 de dez. de 2017

Armário :: Angela Carneiro



Arrumar o armário passei um bom tempo da vida pensando em arrumar o armário passei um tempo menor da vida realmente arrumando o armário E nesse arrumar de armário há um desarrumar de emoções coisas desaparecidas aparecem no armário, na mente, no coração Pouca coisa énecessária par se arrumar o armário um pequeno banco, uma grande cesta de lixo alguma criatividade muita boa-vontade e tempo o tempo passa ao se arrumar o armário passa-se o tempo ao contrário do sentido do relógio pensa-se o tempo Caixas e gavetas coisas acumuladas pastas, recortes, papéis, apostilas, assuntos ao arrumar a coleção empilhada a ampulheta da mente revira Por que guardei isso no armário e não na memória? Por que errei esta questão na prova de história? Lixo! A bola de ping-pong o gordo atirou na prova de geometria com a área do círculo ao redor Lixo! Um papel dobrado como gaivota apenas a palavra azul desenhada a pena (ai, esse tempo que não volta e dá voltas!) E um pouco do passado é rasgado e jogado na cesta de lixo Tudo é novamente selecionado e novamente guardado no armário e na mente armariamente mente novamente armada armário novamente limpo tentativa de organizar a memória e o quarto por pouco tempo pois mais um quarto da vida será passado pensando-se em arrumar o armário.

13 de dez. de 2017

AMOR VIOLETA :: Adélia Luzia Prado de Freitas, mais conhecida apenas como Adélia Prado (Divinópolis, 13 de dezembro de 1935)

Szanto

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.

Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 83

11 de dez. de 2017

Atravessou a rua :: Lia Scorsi

Atravessou a rua inquieta
O homem à moda antiga
Calça preta bem vincada
Sapatos pretos lustrosos
Camisa de branco casta
Cabelos ondinhas gris
Lápis grosso sobre o lábio
Magro, de um magro limpo.

Instante paralisado
Em seu passo lento e certo
-A tarde tornada calma-
Como se a roda d’água
De mover preciso e sempre
Despertasse outro viver
No tempo do antigo homem

AMY FRIEND (Canadá)






















Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...