Eu estava sentada em uma padaria em Higienópolis quando comecei a sentir aquele arrepio de contentamento na espinha. É como se fizesse um sol quentinho de fim de tarde na barriga e apaziguasse os inúmeros inconformismos do fígado. Tudo isso só porque uma mulher levemente acima do peso entrou no recin usando meias coloridas com chinelo de dedo e comprou dois pacotes de bisnaguinha de milho. Se existe esse tipo de gente e eu mereço estar ao lado, o que de errado pode me acontecer hoje?
Desde que passei a observar, com certa devoção (e me sentindo também em paz e resoluta), esses desconhecidos tão seguramente "errados", decidi que me tornei irremediavelmente adulta. Ser adulto é se emocionar vivamente com a falta de pose dos que finalmente desistiram de não ser eles mesmos.
Admiro pessoas aleatórias que metem uma jardineira jeans em cima de um moletom grande. Que erram tão drasticamente no corte de cabelo que dá vontade de ter uma boneca miniatura delas alegrando o escritório. Que demoram para achar uma caneta seca dentro de uma mochila cheia de papéis amassados e que, no final do dia, ostentam óculos que começam a escorregar pela oleosidade de um nariz com narinas milimetricamente disformes.
Esses guerreiros banais são meus heróis do dia a dia. A tia Yolanda de axilas flácidas e bigode descolorido, comprando pescadinha na feira, talvez seja, e a gente passou uma vida renegando isso, a melhor coisa que seus olhos podem alcançar hoje.
Virei uma espécie de caçadora de ancas desequilibradas pelas ruas de Perdizes. Como são queridos os seres que andam por aí como se carregassem uma plaquinha neon no lordo: "Sou apenas mais um que tenta, em vão, disfarçar levemente a luta diária para ser bípede"
Eu vejo latejar neles meus ligamentos inflamados. Vejo meus mais profundos desconfortos existenciais. Sempre que estou sentada ou em pé ou deitada eu penso: "Peraí, parece que tem alguma coisa errada nessa postura". Saber que os muitos e deslumbrantes perambuladores desacertados me entendem me dá ganas de sair pelada e dançando e cantando (e cheia de dores e erros e pelos e gorduras e buracos e preguiças) e abraçá-los. Vamos! Arfantes, enviesados, pendentes, pálidos, frouxos, enrugados, sobreviver ao declive da rua Ministro Gastão Mesquita!
Esses tipos escancaradamente imperfeitos se tornaram meu oxigênio. Eles não sabem mas, muitas vezes, sentada sozinha num restaurante qualquer, eu só consigo comer e pagar a conta e seguir por causa deles. Como são lindos e passíveis de fortes paixões, os feiosos que achamos que ninguém vai querer. Sou melhor porque estou agora sentada, quentinha, embalada pelo nosso desastre. O único colo do adulto é estar confortavelmente péssimo.
Salve você, com seus centímetros a mais em um dos lados. Deus guarde você, com um dos seios claramente mais caído. Vida longa ao amigo cujo saco direito é mais atrofiado. Grande fodedor esse cara do pau meio torto e meia-bomba. Por favor, que minha cicatriz do parto possa ser lambida e adorada. Que seu queixo esculpido no inferno seja a capa da mais cara revista. Respeito tanto quem desistiu de empinar os peitos ao chegar em festas (ou erguer a bunda ao sair das festas) que chega a encher meus olhos de lágrimas. As melhores pessoas são aquelas que abdicaram de parecer as melhores pessoas para as piores pessoas.
Tati Bernardi
Folha de São Paulo. 09.11.18
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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