10 de mai. de 2019

Aos que vierem depois de nós :: Bertolt Brecht

I
Realmente, vivemos tempos sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.
Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?
É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: “Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!”
Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.
Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
II
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
III
Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.
Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.
E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

tradução Manuel Bandeira

....
Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de estupidez,
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses,
Quando falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranqüilamente a rua
Já está então inacessível aos amigos
Que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nada do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
Se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
Se o copo de água que eu bebo, faz falta a quem tem sede?
Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.

Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Manter-se afastado dos problemas do mundo
E sem medo passar o tempo que se tem para viver na terra;
Seguir seu caminho sem violência,
Pagar o mal com o bem,
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim.
É verdade, eu vivo em tempos sombrios!

II

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
Quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta
E me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
Deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção
E não tive paciência com a natureza.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a terra.

III

Vocês, que vão emergir das ondas
Em que nós perecemos, pensem,
Quando falarem das nossas fraquezas,
Nos tempos sombrios
De que vocês tiveram a sorte de escapar.

Nós existíamos através da luta de classes,
Mudando mais seguidamente de países que de sapatos, desesperados!
Quando só havia injustiça e não havia revolta.

Nós sabemos:
O ódio contra a baixeza
Também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
Faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós,
Que queríamos preparar o caminho para a amizade,
Não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
Em que o homem seja amigo do homem,
Pensem em nós
Com um pouco de compreensão.






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