11 de jul. de 2019

O outro Brasil :: Rubem Braga


Houve um tempo em que sonhei coisas — não foi ser eleito senador federal nem nada, eram coisas humildes e vagabundas que entretanto não fiz, nem com certeza farei. Era, por exemplo, arrumar um barco de uns quinze, vinte metros de comprido, com motor e vela, e sair tocando devagar por toda a costa do Brasil, parando para pescar, vendendo banana ou comprando fumo de rolo, não sei, me demorando em todo portinho simpático — Barra de São João, Piúma, Regência, Conceição da Barra, Serinhaém, Turiaçu, Curuçá, Ubatuba, Garopaba — ir indo ao léu, vendo as coisas, conversando com as pessoas — e fazer um livro tão simples, tão bom, que até talvez fosse melhor não fazer livro nenhum, apenas ir vivendo devagar a vida lenta dos mares do Brasil, tomando a cachacinha de cada lugar, sem pressa e com respeito. Isso devia ser bom, talvez eu me tornasse conhecido como um homem direito, cedendo anzóis pelo custo e comprando esteiras das mulheres dos pescadores, aprendendo a fazer as coisas singelas que vivem fora das estatísticas e dos relatórios — quantos monjolos há no Brasil, quantos puçás e paris? Sim, entraria pelos rios lentamente, de canoa, levando aralém, que poderia trocar por roscas amanteigadas, pamonha ou beiju, pois ainda há um Brasil bom que a gente desperdiça de bobagem, um Brasil que a gente deixa para depois, e entretanto parece que vai acabando; tenho ouvido falar em tanques de carpa, entretanto meu tio Cristóvão na fazenda da Boa Esperança tinha um pequeno açude no ribeirão onde criava cascudos, tem dias que dá vontade de beber jenipapina.

Já tomei muito avião para fazer reportagem, mas o certo não é assim, é fazer como Saint-Hilaire ou o Príncipe Maximiliano, ir tocando por essas roças de Deus a cavalo, nada de Rio-Bahia, ir pelos caminhos que acompanham com todo carinho os lombos e curvas da terra, aceitando uma caneca de café na casa de um colono. Só de repente a gente se lembra de que esse Brasil ainda existe, o Brasil ainda funciona a lenha e lombo de burro, as noites do Brasil são pretas com assombração, dizem que ainda tem até luar no sertão, até capivara e suçuarana — não, eu não sou contra o progresso ("o progresso é natural") mas uma garrafinha de refrigerante americano não é capaz de ser como um refresco de maracujá feito de fruta mesmo — o Brasil ainda tem safras e estações, vazantes e piracemas com manjuba frita, e a lua nova continua sendo o tempo de cortar iba de bambu para pescar piau. E como ainda há tanta coisa, quem sabe que é capaz de haver uma mulher também, uma certa mulher que ainda seja assim, modesta porém limpinha, com os cabelos ainda molhados de seu banho de rio, parece que até banho de cachoeira ainda existe, até namoro debaixo de pitangueiras como antigamente, muito antigamente.

BRAGA, Rubem. Crônicas do Espírito Santo. São Paulo: Global, 2013, p. 11-12.

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