Humano não é o impulso
de partilhar a sorte de alguém,
cujo rosto nunca vimos,
mas por algum sinal do sangue
na parede ou no destino
reconhecemos irmão?
Quem de nós ignora
que morremos um pouco
no corpo de quem tomba
ao nosso lado, alvo de um balaço,
ou sufoca a caminho do hospital?
Afinal, o que foi feito do berço
de águas e verdes e afetos
que imaginávamos cultivar?
O que foi feito dos sons
do surdo e do tamborim,
da sanfona, triângulo e zabumba,
da viola sertaneja
que nos acalentaram
e desenharam o mapa
dos nossos corações?
Devastado pela dor e pelo ódio,
já não o reconhecemos como o lugar
que moldamos para nascer e amar
na geografia afetiva da alma.
A palavra do poeta seja sopro
sobre a brasa adormecida
de nossa indignação.
E possa acender as chamas
da ira diante do intolerável.
Não temer a ira!
A sagrada explosão da ira
diante do injusto
é que nos faz humanos!
Pergunto aos palácios de vidro
erigidos pelas mãos
dos pedreiros candangos:
que país será construído
sobre os ossos dos povos
condenados ao matadouro?
Guarani, Kaiowá, Yanomami,
Krenak, Cinta-larga, Tikuna,
Karajá, Suruí, Caiapó, Rikbatsa,
Tapirapé, Kaxinawá, Parakanã, Kamaiurá…
Os Xavante,
sobreviveram ao facão,
ao garimpo e aos massacres.
Às roupas contaminadas com sarampo,
à ferocidade do latifúndio,
devorando veredas e buritizais.
Sobreviverão alcançados
pela maldição do vírus
e pelo silêncio cúmplice dos genocidas?
Ouço na Esplanada
sob o violento azul do inverno
de nossas desesperanças
um difuso clamor.
Que minha voz ecoe o pranto
das mães Yanomami
em busca dos corpos
de seus filhos enterrados.
A morte aqui tem nome e lugar:
favelas, mocambos, aldeias, quebradas.
O inverno já nos alcança
enquanto ainda buscamos flores
da primavera pública que se perdeu…
para coroar a tumba dos encantados
nessa semeadura de cruzes.
Hoje, cinquenta e seis mil mortos,
sufocados pela peste,
batem à porta do genocida.
Quem responderá pelas vidas
que a indiferença
transformou em cruzes?
O holocausto é real.
Os nomes são reais.
A dor é real. O luto é real.
Quem responderá por eles?
Sobre nós o sol
e o olho do drone.
O olho do drone não chora,
não conhece o sal das lágrimas.
Registra a morte, apenas.
Uma geométrica colmeia de assombros
cavada no barro vermelho
do coração do país.
O olho do drone registra o plantio
para entregar um dia aos segadores
a sinistra colheita da morte.
O país dos abraços
aprende na dor
das distâncias medidas,
um novo idioma de gestos:
Eu te amo,
mas não te toco.
Eu te amo
e porque te amo
não te toco.
Contra o escárnio,
que a palavra do poeta
seja sopro e se faça vento
sobre a brasa adormecida
de nossa indignação.
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