Leio hoje que Nelson Freire morreu. Também fico sabendo que 9 pessoas morreram em um desabamento de uma gruta e que mais 25 suspeitos foram mortos pela polícia em Minas Gerais. Uma morte por doença, de uma pessoa famosa e respeitada; 9 mortes de anônimos por acidente e 25 mortes por bala, de possíveis criminosos. Três formas de morrer, três notícias, 35 mortos. Fico me perguntando onde alojar a morte, onde alojar as mortes no meu corpo, no cérebro. Porque, ao mesmo tempo, precisava pensar no almoço, a campainha tocava e eu estava mais preocupada com a preparação de uma aula. Mas espera, como assim, o almoço? Como assim Nelson Freire, anônimos e criminosos?
Não sabemos, não sei o que fazer com as mortes repetidas, acumuladas e simultâneas, de ordens e grandezas diferentes e de pessoas que têm também diferentes importâncias no mundo e na vida de cada um. Fico chocada com a queda da gruta e em pensar que essas nove pessoas que eu não conhecia morreram dessa forma, mas não sei o que fazer com isso. Passa quase instantaneamente. Já com os 25 suspeitos, a reação é mais uma vez pensar que é uma chacina, que não é possível que nem um único policial tenha sequer sido ferido. Passa quase instantaneamente. Já com Nelson Freire fico entristecida, enquanto faço outras coisas continuo pensando na perda para a música e lembrando das vezes em que o vi tocar, mas rapidamente esqueço. Passa quase instantaneamente.
A morte precisa de tempo e precisa ser recebida, mas nós apenas a observamos como mais uma mercadoria entregue pelas redes e pelos jornais. Essa morte-coisa, morte-objeto é recebida como mais um dado acumulativo que a memória registra e que vai diretamente para o porão, quando não para o lixo da mente. É uma violência que, certamente, retorna em forma de melancolia silenciosa ao longo dos dias, minando minhas atividades sem que eu saiba o porquê. Quando nem sei, no meio do preparo de uma comida, me sinto solitariamente cansada e uma preguiça de tudo se abate sobre o macarrão. É a morte, são as mortes que eu não recebi.
É preciso ser passivo com a morte: estar com ela, demorar-se nela, deixar que ela se demore em nós. Sentir, pela demora, que também cada um de nós morre um pouco e de formas diferentes com todas essas mortes, cada uma de um jeito e por uma causa distinta. Saber que a pandemia pode estar passando, mas que o que ela causou em cada um não deve e não pode passar.
É preciso morrer para estar vivo. Isso torna a vida mais digna e mais lenta, valores que surpreendentemente se complementam.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária.
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