13 de fev. de 2023

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) :: REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...

Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isso —

Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...

O que eu era então! Ora, era outro...

Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!

Sei eu o que é útil ou inútil?)...

Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação

Quem eu era e como era quando por aqui passava

Há vinte anos...

Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava então,

Se existisse hoje, talvez se lembrasse...

Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro

Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!

Sim, o mistério do tempo.

Sim, o não se saber nada,

Sim, o termos todos nascido a bordo.

Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo-andar, ainda idêntica a si mesma,

Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?

Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.

Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.

Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.

Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.

Quando muito, nem penso...

Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,

Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhámos indiferentemente um para o outro.

E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.

E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isto realmente se desse...

Verdadeiramente se desse...

Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...

15-12-1932

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 293.

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