Vicky
Caro Antônio,
Teu pai está bem. Chego sempre ao final da tarde apanho-o um pouco cansado da barra do dia. Mas a passos lentos ele me abre a porta e espera paciente que eu lhe prepare a sopa. Prefere a de abóbora, que consome com calma beliscando o pão como um passarinho sovina, catando as migalhas da mesa.
Sua pele aos poucos foi virando uma película frágil, retendo com dignidade os ossos que apontam, espetando-o por dentro os ombros, cotovelos, joelhos e calcanhares. De modo que, ao acariciar o dorso de suas mãos, é como se tocássemos o rizoma de suas veias, vasos protuberantes e microcanais que atravessam um arquipélago de manchas arroxeadas.
Subindo à altura do braço, dá pra ver, quando ele arregaça as mangas do pijama pra comer, através da fina hidrografia, o desenho dos músculos retendo e mantendo ainda íntegro o conjunto que, nos delicados jogos de contrapeso dos reflexos, resultam no seu rosto em um lindo sorriso de agradecimento.
Gosto de ficar com ele, que com sua doçura também me socorre da dureza de meus dias no hospital. Dorme cedo, não costuma me dar trabalho. Ontem pareceu-me com o pulmão cheio, abri sua blusa para esparramar um pouco de pomada de cânfora em seu peito, quando já estava deitado.
A transparência da pele entre as costelas era tanta que jurei ter visto o seu coração, que batia fraquinho, mas bem ritmado, lá no fundo. Hoje está bonzinho, cansou da tevê faz tempo, mas do seu livrinho de capa dura não larga nunca. Pensei que era uma bíblia, um livro de salmos, depois é que me dei conta de que se trata de uma edição muito antiga do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, publicada pela José Olympio.
Conta-me de modo saudoso as passagens com Sancho e Rocinante como se tivessem se passado com ele. Dia desses estava assustado por ter visto um tal Sansão Carrasco quando eu lhe barbeava no espelho. Amiúde, depois dessa hora, quando o sol aponta em sua janela, acalma-se da aflição da noite, a gente se despede, ele fica com seu livro infinito e eu sigo para a clínica.
Hoje devo atrasar na volta, porque tenho de passar antes nos correios e no mercado. Volto pra casa às pressas, sempre nas fortes tempestades, pois ele teme o "fragor das trovoadas", como gosta de repetir. No mais, às vezes brinca me chamando de Dulcineia de Toboso, que eu nem sei quem é. Mas posso te garantir que sua cabeça está boazinha, ele bem sabe que sou Vicky, sua enfermeira.
Con mucho afecto,
respetuosamente,
Victoria
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