Emile Bayard
Luiz descobriu a literatura numa cela forte. Tinha sido preso pela primeira vez aos 19 anos, por assalto e homicídio. Começou pela Febem, depois por outras casas de detenção. Ao todo, ficou preso por 31 anos, com mais 10 meses de lambujem. E em algum ponto, numa cela forte, encontrou-se com a literatura. Não tinha livro nenhum na mão. Mas através do encanamento da privada que ligava a cela dele a outra, um preso contou-lhe a história do livro "Os miseráveis", de Victor Hugo.
"Ele me contou por capítulos, como novela, porque não dava para falar tudo de uma vez.- disse Luiz Alberto Mendes em uma entrevista à Folha -.Quando fui ler, achei desinteressante, perto do que ele contava."
É história parecida com outra que foi contada a Affonso, meu marido. Um homem estava internado no hospital há algum tempo. Melhorava lentamente, mas melhorava, e um dia sarou. Na sala dos médicos, aquele que o tratava comentou com um colega: "Dei alta hoje ao paciente do leito tal, mas ele me pediu para deixá-lo ficar mais uns dias, para poder acabar o livro que está lendo. Achei bonito". " Deve ser alguma mutreta pra comer de graça - respondeu o outro - O paciente tal não sabe ler, é analfabeto". No dia seguinte, chegando junto ao paciente, o médico o interpelou. A resposta foi simples. Quem lia era o companheiro da cama ao lado, que contava para ele . "Eu estou lendo na leitura dele", arrematou.
E porque é Natal, recebo do meu amigo Paulo Netho uma mensagem carinhosa em que me diz do seu gosto de "colocar vento" nas palavras. Paulo é um artista, um grande contador de histórias.
A qualquer momento, alguém põe vento nas palavras e elas se vão , adquirindo nova dimensão no imaginário de quem as recolhe.
Luiz achou "Os miseráveis" de Victor Hugo desinteressante quando, finalmente, o teve em mãos. Não surpreende. Os que leram essa obra prima literária sobre os sofrimentos de Jean Valjean, um egresso das galés, o fizeram sentados em poltronas ou largados em sofás ou camas, talvez uns poucos o tenham lido na condução.
Muito diferente terá sido recebê-lo através do encanamento de uma privada, acocorado a seu lado para não perder uma palavra da voz do irmão "miserável", narrador oculto pelas paredes da cela forte. Só a voz e um sofrimento tão semelhante ao das personagens ligava as duas celas.
A voz que lê em voz alta ou narra, põe outro elemento em cena. À história, às palavras, às intenções do autor da história, acrescentam-se as entonações e pausas do narrador, as suas vibrações vitais. Uma presença física transmite sua vitalidade a tantas presenças imaginadas. E o ouvinte recupera a emoção do seu primeiro aprendizado, quando, bebê ainda, a vida e seus elementos lhe eram narrados pela voz da mãe.
Hoje é véspera de Natal. Este ano, mais de um milhão de migrantes chegou à Europa, em fuga de conflitos, fome, pobreza e falta de oportunidades em seus países. A cifra do ano passado, que já era alta, foi quadruplicada.
Que histórias contarão esses migrantes a seus filhos? Nos séculos por vir - se é que ainda teremos séculos ou milênios à frente- a "grande migração" será modificada pelo vento das palavras e pelos descaminhos da memória. O símbolo tomará o lugar da realidade. E os jovens ouvirão as vozes dos mais velhos com o mesmo maravilhamento com que se escutam histórias nunca acontecidas
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