16 de nov. de 2024

Assombro ::Cristina Peri Rossi (Montevidéu, 12 de novembro de 1941)

 

 

Ensina-me, dizes, dos teus vinte e um anos

ávidos, acreditando, ainda, que algo pode ser ensinado


e eu, que passei dos sessenta

te olho com amor

isto é, com lonjura

(todo amor é amor às diferenças

ao espaço vazio entre dois corpos

ao espaço vazio entre duas mentes

ao horrível pressentimento de não morrer a dois)


Ensino-te, vagarosamente, alguma citação de Goethe

(“Detém-te, instante, és tão belo")

ou de Kafka (uma vez houve, houve uma vez

uma sereia que não cantou)


enquanto a noite desliza lentamente em direção ao amanhecer

através desta grande janela

que amas tanto

porque as luzes noturnas

ocultam a verdadeira cidade


e em realidade poderíamos estar em qualquer parte

essas luzes poderiam ser as de Nova York,

avenida Broadway, as de Berlim, Konstanzerstrasse,

as de Buenos Aires, calle Corrientes


e te oculto a única coisa que verdadeiramente sei:

só é poeta quem sente que a vida não é natural

que é espanto

descobrimento revelação

que não é normal estar vivo


não é natural ter vinte e um anos

nem tampouco mais de sessenta


não é normal ter andado às três da manhã

pela velha ponte de Córdoba, Espanha, sob a luz

amarela das lâmpadas de rua,


não é natural o perfume das laranjeiras nas praças

— três da manhã —


 nem em Oliva nem em Sevilha


 o natural é o assombro


 o natural é a surpresa


 o natural é viver como recém-chegada

 

ao mundo


aos becos de Córdoba e seus arcos


às praças de Paris


à umidade de Barcelona


ao museu de bonecas


no carro velho estacionado


nas estradas mortas de Berlim.


O natural é morrer


sem ter andado de mãos dadas


através dos portais de uma cidade desconhecida


nem ter sentido o perfume das flores brancas dos jasmineiros em flor


às três da manhã,


meridiano de Greenwich


o natural é que quem tenha andado de mãos dadas


através dos portais de uma cidade desconhecida


não o escreva


enterre-o no caixão do esquecimento


A vida brota em todos os lugares


consanguínea


bêbada


bacante exagerada


em noites de paixões turvas


mas havia uma fonte que gorgolejava


languidamente


e era difícil não sentir que a vida pode ser bonita


às vezes


como uma pausa


como uma trégua que a morte

 

concede ao gozo.


.....

 Enséñame - dices, desde tus veintiún años

ávidos, creyendo, todavía que se puede enseñar alguna cosa
y yo, que pasé de los sesenta
te miro con amor
es decir, con lejanía
(todo amor es amor a las diferencias
al espacio vacío entre dos cuerpos
al espacio vacío entre dos mentes
al horrible presentimiento de no morir de a dos)
 
te enseño, mansamente, alguna cita de Goethe
(“detente, instante, eres tan bello")
o de Kafka (una vez hubo, hubo una vez
una sirena que no cantó)
 
mientras la noche lentamente se desliza hacia el alba
a través de este gran ventanal
que amas tanto
porque sus luces nocturnas
ocultan la ciudad verdadera
 
y en realidad podríamos estar en cualquier parte
estas luces podrían ser las de New York, avenida
Broadway, las de Berlín, Konstanzerstrasse,
las de Buenos Aires, calle Corrientes
 
y te oculto la única cosa que verdaderamente sé:
sólo es poeta aquel que siente que la vida no es natural
que es asombro
descubrimiento revelación
que no es normal estar vivo
no es natural tener veintiún años
ni tampoco más de sesenta

no es normal haber caminado a las tres de la mañana
por el puente viejo de Córdoba, España, bajo la luz
amarilla de las farolas,
no es natural el perfume de los naranjos en las plazas
-tres de la mañana-
ni en Oliva ni en Sevilla
lo natural es el asombro
lo natural es la sorpresa
lo natural es vivir como recién llegada
al mundo
a los callejones de Córdoba y sus arcos
a las plazas de París
a la humedad de Barcelona
al museo de muñecas
en el viejo vagón estacionado
en las vías muertas de Berlín
 
Lo natural es morirse
 
sin haber paseado de la mano
por los portales de una ciudad desconocida
ni haber sentido el perfume de los blancos jazmines en flor
a las tres de la mañana,
meridiano de Greenwich
 
lo natural es que quien haya paseado de la mano
por los portales de una ciudad desconocida
no lo escriba
lo hunda en el ataúd del olvido
 
La vida brota por todas partes
consanguínea
ebria
bacante exagerada
en noches de pasiones turbias
pero había una fuente que cloqueaba
lánguidamente


y era difícil no sentir que la vida puede ser bella a veces
como una pausa
como una tregua que la muerte
le concede al goce.
 

CRISTINA PERI ROSSI
Detente, instante eres tan bello
(2021)

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