Ensina-me, dizes, dos teus vinte e um anos
ávidos, acreditando, ainda, que algo pode ser ensinado
e eu, que passei dos sessenta
te olho com amor
isto é, com lonjura
(todo amor é amor às diferenças
ao espaço vazio entre dois corpos
ao espaço vazio entre duas mentes
ao horrível pressentimento de não morrer a dois)
Ensino-te, vagarosamente, alguma citação de Goethe
(“Detém-te, instante, és tão belo")
ou de Kafka (uma vez houve, houve uma vez
uma sereia que não cantou)
enquanto a noite desliza lentamente em direção ao amanhecer
através desta grande janela
que amas tanto
porque as luzes noturnas
ocultam a verdadeira cidade
e em realidade poderíamos estar em qualquer parte
essas luzes poderiam ser as de Nova York,
avenida Broadway, as de Berlim, Konstanzerstrasse,
as de Buenos Aires, calle Corrientes
e te oculto a única coisa que verdadeiramente sei:
só é poeta quem sente que a vida não é natural
que é espanto
descobrimento revelação
que não é normal estar vivo
não é natural ter vinte e um anos
nem tampouco mais de sessenta
não é normal ter andado às três da manhã
pela velha ponte de Córdoba, Espanha, sob a luz
amarela das lâmpadas de rua,
não é natural o perfume das laranjeiras nas praças
— três da manhã —
nem em Oliva nem em Sevilha
o natural é o assombro
o natural é a surpresa
o natural é viver como recém-chegada
ao mundo
aos becos de Córdoba e seus arcos
às praças de Paris
à umidade de Barcelona
ao museu de bonecas
no carro velho estacionado
nas estradas mortas de Berlim.
O natural é morrer
sem ter andado de mãos dadas
através dos portais de uma cidade desconhecida
nem ter sentido o perfume das flores brancas dos jasmineiros em flor
às três da manhã,
meridiano de Greenwich
o natural é que quem tenha andado de mãos dadas
através dos portais de uma cidade desconhecida
não o escreva
enterre-o no caixão do esquecimento
A vida brota em todos os lugares
consanguínea
bêbada
bacante exagerada
em noites de paixões turvas
mas havia uma fonte que gorgolejava
languidamente
e era difícil não sentir que a vida pode ser bonita
às vezes
como uma pausa
como uma trégua que a morte
concede ao gozo.
.....
Enséñame - dices, desde tus veintiún años
ávidos, creyendo, todavía que se puede enseñar alguna cosa
y yo, que pasé de los sesenta
te miro con amor
es decir, con lejanía
(todo amor es amor a las diferencias
al espacio vacío entre dos cuerpos
al espacio vacío entre dos mentes
al horrible presentimiento de no morir de a dos)
te enseño, mansamente, alguna cita de Goethe
(“detente, instante, eres tan bello")
o de Kafka (una vez hubo, hubo una vez
una sirena que no cantó)
mientras la noche lentamente se desliza hacia el alba
a través de este gran ventanal
que amas tanto
porque sus luces nocturnas
ocultan la ciudad verdadera
y en realidad podríamos estar en cualquier parte
estas luces podrían ser las de New York, avenida
Broadway, las de Berlín, Konstanzerstrasse,
las de Buenos Aires, calle Corrientes
y te oculto la única cosa que verdaderamente sé:
sólo es poeta aquel que siente que la vida no es natural
que es asombro
descubrimiento revelación
que no es normal estar vivo
no es natural tener veintiún años
ni tampoco más de sesenta
no es normal haber caminado a las tres de la mañana
por el puente viejo de Córdoba, España, bajo la luz
amarilla de las farolas,
no es natural el perfume de los naranjos en las plazas
-tres de la mañana-
ni en Oliva ni en Sevilla
lo natural es el asombro
lo natural es la sorpresa
lo natural es vivir como recién llegada
al mundo
a los callejones de Córdoba y sus arcos
a las plazas de París
a la humedad de Barcelona
al museo de muñecas
en el viejo vagón estacionado
en las vías muertas de Berlín
Lo natural es morirse
sin haber paseado de la mano
por los portales de una ciudad desconocida
ni haber sentido el perfume de los blancos jazmines en flor
a las tres de la mañana,
meridiano de Greenwich
lo natural es que quien haya paseado de la mano
por los portales de una ciudad desconocida
no lo escriba
lo hunda en el ataúd del olvido
La vida brota por todas partes
consanguínea
ebria
bacante exagerada
en noches de pasiones turbias
pero había una fuente que cloqueaba
lánguidamente
y era difícil no sentir que la vida puede ser bella a veces
como una pausa
como una tregua que la muerte
le concede al goce.
CRISTINA PERI ROSSI
Detente, instante eres tan bello
(2021)
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