os vivos morrem logo
são os mortos que morrem devagar
são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos
passam-se dias, e ainda há fios de cabelo espalhados pela casa
passam-se meses, e ainda vemos o livro
o marcador guardando o fogo da última página lida
passam-se anos, e descobrimos na gaveta as palavras escritas, os papéis
são lentos, os mortos
são lentos, como é lento o amor
como é lento reconhecer uma letra, que nos faz pensar nas mãos
como é lento imaginar as mãos, que lembram o pulso
como é lento pressentir o pulso, que nos atravessa
como sangue
em uma hora de hemorragia intensa os vivos perdem todo o sangue dos seus corpos
os mortos no entanto se demoram, habitam a casa pelo meio
no mênstruo das mulheres, no silêncio partilhado entre mãe e filha
entre duas irmãs
e topamos com seus rostos através de outros rostos
não só os da família, mas também daqueles que cruzam por nós na rua
e que não conhecemos
sempre acabamos encontrando nossos mortos por aí
eles acham jeito de voltar
de permanecer
eles acham jeito de surgir num sorriso
na cor que certos olhos assumem em tardes mais luminosas
num gesto breve
qualquer
os mortos, os mortos
tão vivos
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mar becker
em: "os mortos, os mortos", caderno em trabalho (em feitura); 2017/23
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