2 de nov. de 2024

os vivos morrem logo são os mortos que morrem devagar :: Mar Becker

os vivos morrem logo

são os mortos que morrem devagar


são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos

passam-se dias, e ainda há fios de cabelo espalhados pela casa

passam-se meses, e ainda vemos o livro

o marcador guardando o fogo da última página lida

passam-se anos, e descobrimos na gaveta as palavras escritas, os papéis


são lentos, os mortos

são lentos, como é lento o amor

como é lento reconhecer uma letra, que nos faz pensar nas mãos

como é lento imaginar as mãos, que lembram o pulso

como é lento pressentir o pulso, que nos atravessa

como sangue


em uma hora de hemorragia intensa os vivos perdem todo o sangue dos seus corpos

os mortos no entanto se demoram, habitam a casa pelo meio

no mênstruo das mulheres, no silêncio partilhado entre mãe e filha

entre duas irmãs


e topamos com seus rostos através de outros rostos

não só os da família, mas também daqueles que cruzam por nós na rua

e que não conhecemos


sempre acabamos encontrando nossos mortos por aí

eles acham jeito de voltar

de permanecer

eles acham jeito de surgir num sorriso

na cor que certos olhos assumem em tardes mais luminosas

num gesto breve

qualquer


os mortos, os mortos

tão vivos


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mar becker 

em: "os mortos, os mortos", caderno em trabalho (em feitura); 2017/23

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