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9 de ago. de 2015

Acalanto :: Dorival Caymmi

É tão tarde
A manhã já vem,
Todos dormem
A noite também,
Só eu velo
Por você, meu bem
Dorme anjo
O boi pega Neném;
Lá no céu
Deixam de cantar,
Os anjinhos
Foram se deitar,
Mamãezinha
Precisa descansar
Dorme, anjo
Papai vai lhe ninar:
"Boi, boi, boi,
Boi da cara preta
Pega essa menina
Que tem medo de careta."

19 de mai. de 2015

O Gato :: Charles Baudelaire (1821-1867)

Picasso
É no meu cérebro que se passeia,
Como no seu apartamento,
Um gato doce e atraente.
Mal o consigo ouvir, se mia,

Porque o seu timbre é tão discreto;
Mas a voz, calma ou iracunda,
É sempre rica e bem profunda.
É o seu encanto e o seu segredo.

A voz, que goteja e se infiltra
No meu fundo mais tenebroso,
Enche-me, qual verso copioso,
E satisfaz-me como um filtro.

Adormeço os males cruéis,
Ela contém todos os extâses;
E pra dizer as maiores frases
Não necessita de palavras.

Não, não exista arco que morda
O meu peito, raro instrumento,
E faça majestosamente
Cantar essa vibrante corda,

Como a tua voz, ó misterioso
Gato seráfico, tão estranho,
No qual tudo é, como num anjo,
Tão subtil como harmonioso!

Tradução: Fernando Pinto do Amaral
As Flores do Mal. Editora Assírio e Alvim. 1992

30 de abr. de 2015

Sendo quem sou, em nada me pareço :: Hilda Hilst - (1930 - 2004)

Henry Fuseli 
Sendo quem sou, em nada me pareço.
Desloco-me no mundo, ando a passos
e tenho gestos e olhos convenientes.
Sendo quem sou
não seria melhor ser diferente
e ter olhos a mais, visíveis, úmidos
ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.

As paisagens em ti se multiplicam
e o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansam-me as esperanças renovadas
e o verso no meu peito repetido.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
e exige posse e pranto, sal e adeus.

Queres o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.

*            *            *

In: "Exercícios" 

20 de abr. de 2013

O vinho dos amantes de Charles Baudelaire

Bouguereau

Hoje o espaço é esplêndido!
Sem freio, sem esporas, sem brida,
Partamos a cavalo no vinho
Para um céu feérico e divino!

Como dois anjos atormentados
Por calentura implacável,
No azul cristal da manhã
Sigamos a miragem distante!

Suavemente balouçados sobre a asa
Do turbilhão inteligente,
Em um delírio paralelo,

Minha irmã, nadando lado a lado,
Fugiremos sem descanso nem tréguas
Para o paraíso dos meus sonhos!

Os paraísos artificiais. trad. José Saramago.Livros B. Estampa, 1978.