3 de jun. de 2012

2 de jun. de 2012

Tenho uma filha de 18 anos de Fabrício Carpinejar


Foto de Cínthya Verri

Mariana completou 18 anos ontem. Ela diz pai pai... sempre duas vezes, acho engraçado, não é apenas pai!, mas pai pai..., um chamado reticente, com eco de montanha, a me procurar pela casa. Talvez dobre a paternidade para recuperar os dias e os anos que não esteve comigo. Moramos juntos desde 2010. Já sofremos a distância, o medo de ser esquecido. Agora dividimos o mesmo telhado de estrelas para comemorar sua maioridade.

Tenho uma filha adulta. Uma filha crescida. Sinto-me importante, não me vejo envelhecido.

Mariana é altamente vaidosa de suas palavras. Exatamente como eu.

Lê devagar para não perder nenhuma frase. Não suporta uma palavra sem significado. Carrega minidicionário na bolsa. Nunca ri disso, acha que o escritor é um turista da própria língua, não tem vergonha de perguntar o óbvio e colecionar sons.

Mariana é uma tímida esbaforida. Exatamente como eu.

Aquela figura atrapalhada que tenta não chamar atenção e acaba atraindo o dobro do apelo. Entrará de fininho em sala de aula, atrasada, e derrubará metade dos livros. A turma inteira vai girar o rosto em sua direção.

Mariana é ansiosa. Exatamente como eu.

Para esperar um torpedo de namoro, inventa o inferno. Para esperar uma reconciliação, come uma caixa de bombons. Para ganhar um abraço, briga e grita como um bicho. O que mais desagrada na história do mundo é a paciência. Tem uma pressa para ser feliz. O amor é para ontem, hoje é tarde.

Mariana é distraída. Exatamente como eu.

Não que tenha problema de atenção, é o contrário, um excesso de escuta, acompanha duas ou três conversas simultaneamente e pretende participar de todas.

Mariana é debochada. Exatamente como eu.

Cria conflitos para sair do tédio. Faz piadas solitárias, provoca as pessoas a tomar partido, polemiza por prazer e testa os limites dos outros. Poucos entendem sua rápida mudança de posicionamento: desagrada com fúria e logo avisa que era brincadeira.

Mariana tem meus olhos tristes e caídos, minha paixão por dormir tarde, meu receio dos armários abertos, minha curiosidade pelas geladeiras dos amigos, minha superstição com escadas, minha inclinação por roupas coloridas e extravagantes.

Mas sou mais pai quando minha filha não se parece comigo. Quando ela não me repete. Quando ela é ela e mais ninguém.

Mariana, por exemplo, perdoa com facilidade a vida, bem diferente de mim, que não desculpei o tempo que não fiquei perto dela.

fonte: http://carpinejar.blogspot.com/2011/12/tenho-uma-filha-de-18-anos.html

1 de jun. de 2012

Pica-pau, ipecu, carapina e pinica-pau, picchio







Flor de maio









Fado de Maria do Rosário Pedreira



Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses: as ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças açoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.

A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu

estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.

31 de mai. de 2012

Canção de Laurie Anderson.


Yoshiro Tachibana

UM HOMEM ACORDA AO SOM DA CHUVA,
DE UM SONHO COM SUAS AMANTES,
QUE PASSAM PELO SEU QUARTO.
ELAS PASSAM, ESTAS AMANTES,
SEM JAMAIS TOCÁ-LO
 AS [ SILHUETAS ] MOVEM-SE PELO QUARTO.
O HOMEM ESTÁ ACORDADO AGORA.
ELE NÃO CONSEGUE MAIS DORMIR.
ASSIM, ELE REPETE ESTAS PALAVRAS,
UMA E OUTRA VEZ MAIS:
BRAVURA. BONDADE. CLAREZA.
HONESTIDADE. COMPAIXÃO. GENEROSIDADE.
BRAVURA. HONESTIDADE.
DIGNIDADE.
......................................
Forgetting de Laurie Anderson.

A man wakes up to the sound of rain
From a dream about his lovers
Who pass through his room.
They brush lightly by, these lovers.
They pass. Never touching.
These passing lovers move through his room.
The man is awake now
He can't get to sleep again.
So he repeats these words
Over and over again:
Bravery. Kindness. Clarity.
Honesty. Compassion. Generosity.
Bravery. Honesty. Dignity.
Clarity. Kindness. Compassion.
http://www.youtube.com/watch?v=7U070JOC5hs

30 de mai. de 2012

O Sal da Língua de Eugénio de Andrade


Yasushi Inoue: Taiji


Escuta escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extingue o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

29 de mai. de 2012

Tina Modotti (1896 -1942) fotógrafa italiana

















A arte da poética V de Sophia de Mello Breyner Andresen

imagem: Jardim em  Giverny, França

Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro — aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas — coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes três versos:
A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha.

(Lido na Sorbonne, em Paris, em Dezembro de 1988, por ocasião do encontro intitulado Les Belles Étrangères.)

28 de mai. de 2012

Ipê-rosa, pau-d'arco, piúna







Motivo da Rosa de Cecília Meirelles



Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

27 de mai. de 2012

Dorme de Maria do Rosário Pedreira


Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos. Fecha os olhos agora e sossega — o pior já passou há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão desvia os passos do medo. Dorme, meu amor — a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste e pode levantar-se como um pássaro assim que adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra não hão-de derrubar-me — eu já morri muitas vezes e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos agora e sossega — a porta está trancada; e os fantasmas da casa que o jardim devorou andam perdidos nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme, meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui, de guarda aos pesadelos — a noite é um poema que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.

25 de mai. de 2012

Poema esquisito de Adélia Prado



Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói. 
Ninguém tem culpa. Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo 
de eles terem seus olhos sobre mim. 
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa, 
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol. 
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai 
Ôôôô mãe 
Dentro de mim eles respondem 
tenazes e duros
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.

24 de mai. de 2012

Lester Weiss ( Brooklyn, NY 1955) - Fotografia




















http://www.ojoblanco.com/gallery/index.php

Lisboa de Eugénio de Andrade

foto: Gato em  Alfama, Lisboa

Alguém diz com lentidão:
«Lisboa, sabes…»
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,           
algumas rugas finas
a espreitar-me os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eu sei. E tu, sabias?

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...