fonte: http://fotomorfoses.blogspot.com.br/
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
18 de set. de 2014
Gosto de Ícaro :: Tjiske Jansen
Odilon Redon
Gosto daquela rapariga que reparou como era azul a barba do Barba Azul – era exatamente esse o motivo. Gosto da Bela Adormecida que afinal fazia de conta que dormia.
Gosto da Branca de Neve que achava os anões um bando de neuróticos.
‘Quem é que se sentou na minha cadeira? Quem é que comeu do meu prato?’
E do anão, que não simpatizava lá muito com a Branca de Neve:
‘Quando ela não morava aqui, éramos só sete. E agora? É ver-nos.’
Do gigante que estava arreliado porque toda a gente chamava botas aos seus sapatos.
Não gosto de quem se acomoda no conto. Mas sobretudo
Gosto de Ícaro que sabia que a cera se iria derreter e no entanto voou em direção ao sol.
17 de set. de 2014
Doída alegria - Ferreira Gullar
Aldemir Martins
Durante anos
foi a minha constante companhia
aonde eu estava
ele vinha
e ronronando
em meu colo se acolhia
Até que um dia...
Faz anos já que a casa está vazia
Mas eis que
inesperado
ele de novo chega
e se deita a meu lado
Não me atrevo
a olhá-lo
pois é melhor não vê-lo
que não vê-lo
Nada pergunto
apenas vivo
a doída ilusão
de tê-lo junto
16 de set. de 2014
A ÁRVORE QUE NINGUÉM VISITA :: CHARLES SIMIC (Belgrado, 1938)
Aquela colina íngreme e rochosa,
Parando para descansar e admirar uma flor silvestre
E a vista do lago
No vale lá em baixo.
Teria gostado de uma cabra por companhia.
Uma preta e branca, com um sino
Para ir à frente, pastar um pouco e romper
O silêncio quando este retoma sua ascensão
Até onde uma árvore escura e silenciosa está
Esperando todos estes anos que alguém
Se sente à sua sombra, em calma consigo mesmo.
Até o vento está sempre a inventar
Joguinhos para as suas folhas brincarem,
Sem pressa agora de perturbar a paz.
15 de set. de 2014
COMER, COMER :: Clarice Lispector
Ekaterina Pozdniakova
Não sei como são as outras casas de família. Na minha casa todos falam em comida. “Esse queijo é seu?” “Não, é de todos.” “A canjica está boa?” “Está ótima.” “Mamãe, pede à cozinheira para fazer coquetel de camarão, eu ensino.” “Como é que você sabe?” “Eu comi e aprendi pelo gosto.” “Quero hoje comer somente sopa de ervilhas e sardinha.” ”Essa carne ficou salgada demais.” “Estou sem fome, mas se você comprar pimenta eu como.” “Não, mamãe, ir comer no restaurante sai muito caro, e eu prefiro comida de casa.” “Que é que tem no jantar para comer?”
Não, minha casa não é metafísica. Ninguém é gordo aqui, mas mal se perdoa uma comida malfeita. Quanto a mim, vou abrindo e fechando a bolsa para tirar dinheiro para compras. “Vou jantar fora, mamãe, mas guarde um pouco do jantar para mim.” E quanto a mim, acho certo que num lar se mantenha aceso o fogo para o que der e vier. Uma casa de família é aquela que, além de nela se manter o fogo sagrado do amor bem aceso, mantenham-se as panelas no fogo. O fato é simplesmente que nós gostamos de comer. E sou com orgulho a mãe da casa de comidas. Além de comer conversamos muito sobre o que acontece no Brasil e no mundo, conversamos sobre que roupa é adequada para determinadas ocasiões. Nós somos um lar.
In: A descoberta do mundo. Editora Nova Fronteira, 1984. p. 222
14 de set. de 2014
Conversa puxa conversa à toa - Clarice Lispector
Jean Metzinger, 1919
Ela não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo. Parei de tomar o café, meditei: o mundo ainda será muito mais criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão atrasados em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa não será usada como palavra, nem mesmo vai se falar nela: apenas tudo se criará. Não é culpa nossa - continuei com meu café - se estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em "milhares de anos à nossa frente", deu-me quase uma vertigem pois não consigo contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos, é possível que voltemos às cavernas e que tudo se repita de novo? Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o mundo será daqui a milhares de anos. Por outro lado, continuei, nós estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto estamos secos como um figo seco onde ainda há um pouco de umidade.
Enquanto isso a empregada estende roupa na corda e continua sua melopéia sem palavras. Banho-me nela. A empregada é magra e morena, e nela se aloja um "eu". Um corpo separado dos outros, e a isso se chama de "eu"? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado. Ela é um "eu".
In: A Descoberta do mundo. Editora Nova Fronteira, 1984. p. 444
13 de set. de 2014
Livros :: Caetano Veloso
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.
Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.
Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou o que é muito pior por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.
12 de set. de 2014
QUANDO MINHAS PALAVRAS VOARAM :: Fabrício Carpinejar
Nossa vida não é triste. Mesmo quando não temos uma alegria, temos uma esperança.
A esperança é a alegria nascendo.
Nunca fui vítima do passado, órfão da memória, coitadinho da infância.
Não me diferenciei pela dor, nem me destaquei pela tristeza.
Detesto reclamar. Reclamar só chama rancor.
O que eu passei, passei, superei de algum jeito, os traumas não me mataram.
As brigas não me levaram ao ódio e ao ressentimento. Não fiquei sequelado.
Aquilo que parecia um sofrimento eterno também esqueci.
Não irei me vangloriar das feridas. Gosto mais das minhas sardas do que das minhas cicatrizes.
Sofri o que aguentei. Aguentar é deixar de sofrer.
Fui educado numa escola pública em que não tinha ninguém para me defender.
Durante dois anos, cedi meu prato de comida para a turma da rua Lavras. O bom é que odiava sagu e polenta, as duas refeições básicas da época.
Era terrível a gangue formada por garotos quatro anos mais velhos do que eu. Andava com canivete e chaco. Arrastava vítimas pelos corredores do Imperatriz Leopoldina. Cobrava a feitura de temas e revistava bolsos dos colegas no recreio.
Desfalcou várias vezes minha mochila. Levou estojos, cadernos, réguas e a coleção de bolitas.
Sobrevivi ao roubo. Sobrevivi ao medo. Sobrevivi aos reveses.
Lembro que eles me seguraram pelos pés na janela do terceiro andar do refeitório.
Fiquei balançando do lado de fora. Um ioiô das risadas dos meninos.
Eu gritava de horror.
Quinze minutos balançando pelo avesso. Um enforcado dos pés.
Como se estivesse num kamikaze do parque de diversão.
Alucinado de ponta-cabeça. Batendo com o peito na parede do lado de fora.
Minhas palavras de socorro voaram pelo pátio. Pelo bairro. Foi quando aprendi a voar pela boca.
Eu me esvaí em lágrimas como qualquer criança naquela situação-limite.
Devo ter mijado, devo ter babado, devo ter feito o testamento na hora.
Olhava para baixo e me enxergava despedaçado no concreto.
A poça de sangue marcaria minha despedida do mundo.
Os guris me mantinham preso apenas pelos tênis.
Agradeço que usava Kichute amarrado nas canelas, o calçado nunca escorregava. O cadarço firme como um cordão umbilical.
Se não fosse o Kichute, estaria morto.
Sempre teremos uma esperança maior do que a tristeza. A esperança já é uma alegria.
Mesmo que seja um Kichute.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 16/07/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17493
11 de set. de 2014
“He loved beauty that looked kind of destroyed” RUI PIRES CABRAL (Macedo de Cavaleiros, Portugal, 1967)
Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrebalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.
10 de set. de 2014
INVERNO :: Antonio Cicero.
Franz Marc, 1912
No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir
de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.
Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar.
9 de set. de 2014
O som - Ferreira Gullar
Praça do Lido, Copacabana, RJ.
o som é da Terra
não há nenhuma música das esferas
como pensou Aristóteles
música barulho
o trepidar cristalino
da água
sob as folhas
é coisa terrestre
o cosmo é um vastíssimo silêncio
de bilhões e bilhões de séculos
nenhum ruído
as estrelas são imensas explosões mudas
um desatino
a matéria estelar
(a explodir)
é silêncio
e energia
Para outros ouvidos talvez
poderia ser o universo
um insuportável barulho;
não para os nossos
terrenos
Viver na Terra é ouvir
entre outras vozes
o marulho
do mar salgado e azul
ouvir a ventania a rasgar-se nos galhos
antes do temporal
só aqui
neste planeta é que
se pode escutar teu límpido gorjeio,
passarinho,
pequenino cantor
da praça do Lido.
8 de set. de 2014
Janela sobre o corpo de Eduardo Galeano
Julie Steiner
A igreja afirma: O corpo é uma culpa.
A ciência afirma: O corpo é uma máquina.
A publicidade afirma: O corpo é um negócio.
O corpo confirma: Sou uma festa.
Tradução de Adriano Nunes
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VENTANA SOBRE EL CUERPO
La iglesia dice: El cuerpo es una culpa.
La ciencia dice: El cuerpo es una máquina.
La publicidad dice: El cuerpo es un negocio.
El cuerpo dice: Yo soy una fiesta.
In: GALEANO, Eduardo. El Viaje. 2006. p. 21.
In: GALEANO, Eduardo. “El Viaje”. Mini Letras/ H KliCZKOWSKI, primera edición: septiembre de 2006., p. 21.
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