Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
26 de set. de 2014
A planta - Ferreira Gullar
Salvador Dali, 1924
Haverá mesmo tanta
diferença
entre mim e a planta
do vaso da sala?
Ao que se percebe
ela é verde
e não fala
Pode ser que ouvido
melhor que o meu
ouça-lhe a voz da seiva
a irrigar-lhe o caule
Ao contrário de mim
( forma pronta )
a planta
se multiplica em folhas
que ela
a cada dia puxa
de si
( do ventre )
como sabres
feito um jogador
a exibir seus naipes
Em alguma parte alguma. 2ª ed. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
25 de set. de 2014
PÁSSARO :: Adriano Nunes
Blenda Tyvoll
ao pássaro
o passo
rosas
asas
adentro-o
raspas
aspas
o ar
no centro
do sentimento
o céu
habitar.
Fonte: Laringes de grafite. Editora: Vidráguas.
24 de set. de 2014
Eucanaã Ferraz, "Não saberia dizer ..."
Não saberia dizer a hora
em que me desfizera de tudo o que não era teu,
quando cada coisa se deixou cobrir
por tua presença sem margens
e deixou de haver um lado
que fosse fora de ti.
Faz de conta que ela era sábia :: Clarice Lispector
Jan Sluyters, 1912
(...) pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro — pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver.
In: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
23 de set. de 2014
Sul :: Nuno Júdice
a solidão, o olhar que se comove com o cair
da noite e com o nascer do dia; e, até,
os risos de mulheres que se ouvem desde longe,
trazidos pelo ar cuja transparência se sente
na própria respiração. No entanto, debruço-me
da varanda e dou por que algo se oculta,
para além dos muros e dos quintais, e chama
por mim sem que eu possa responder. Então,
volto para dentro: preparo o café; e
enquanto a água ferve o mistério desaparece,
inútil e excessivo, no início da tarde.
In: As regras da perspectiva, 1990
22 de set. de 2014
O PAÍS DAS MARAVILHAS :: Antonio Cícero
Jesus Rafael Soto, 2005
Não se entra no país das maravilhas,
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.
21 de set. de 2014
Um Reino Cheio de Mistério de Clarice Lispector
No dia 21 de setembro comemorou-se o Dia da Árvore, o que deve ter dado trabalho a muito menino do primário, do qual certamente exigiram uma redação sobre o tema: com a alma bocejando, os meninos devem ter dito que a árvore dá sombra, frutos etc.
Mas, ao que eu saiba, não se comemora o dia da planta, ou melhor, da plantação. E esse dia é importante para a experiência humana das crianças e dos adultos. Plantar é criar na Natureza. Criação insubstituível por outro tipo qualquer de criação.
Lembro-me de quando eu era menina e fui passar o dia numa granja. Foi um dia glorioso: lá plantei um pé de milho com muito amor e excitação. Depois, de quando em quando, eu pedia notícias do que havia criado.
Mais tarde, na Suíça, plantei um pé de tomates numa lata grande, bonita. Quando começaram a aparecer os ainda pequenos tomates verdes e duros achei inacreditável que eu mesma lhes tivesse provocado o nascimento: eu entrara no mistério da Natureza. Cada manhã, ao acordar, a primeira coisa que fazia era ir examinar minuciosamente a planta: é como se a planta usasse a escuridão da noite para crescer. Esperar que algo amadureça é uma experiência sem par: como na criação artística em que se conta com o vagaroso trabalho do inconsciente. Só que as plantas são a própria inconsciência.
Nesse reino, que não é nosso, a planta nasce, cresce, amadurece e morre. Sem nenhum objetivo de satisfazer algum instinto. Ou estarei enganada, e há instintos os mais primários no reino vegetal? Meu tomateiro parecia ter tomates vermelhos porque assim queria, sem nenhuma outra finalidade que não a de ser vermelho, sem a menor intenção de ser útil. A utilização do tomate para se comer é problema dos humanos.
Um dos gestos mais belos e largos e generosos do homem, andando vagarosamente pelo campo lavrado, é o de lançar na terra as sementes.
E quando os tomates ficaram redondos, grandes e vermelhos? Chegara a hora da colheita. Não foi sem alguma emoção que vi num prato da mesa os tomates que eram mais meus que um livro meu. Só que não tive coragem de comê-los. Como se comê-los fosse um sacrilégio, uma desobediência à lei natural. Pois um tomateiro é arte pela arte. Sem nenhum proveito senão o de dar tomate.
O ritmo das plantas é vagaroso: é com paciência e amor que elas crescem.
Entrar no Jardim Botânico é como se fôssemos trasladados para um novo reino. Aquele amontoado de seres livres. O ar que se respira é verde. E úmido. É a seiva que nos embriaga de leve: milhares de plantas cheias da vital seiva. Ao vento as vozes translúcidas das folhas de plantas nos envolvem num suavíssimo emaranhado de sons irreconhecíveis. Sentada ali num banco, a gente não faz nada: fica apenas sentada deixando o mundo ser. O reino vegetal não tem inteligência e só tem um instinto, o de viver. Talvez essa falta de inteligência e de instintos seja o que nos deixa ficar tanto tempo sentada dentro do reino vegetal.
Lembro-me de que no curso primário a professora mandava cada aluno fazer uma redação sobre um naufrágio, um incêndio, o Dia da Árvore. Eu escrevia com a maior má vontade e com dificuldade: já então não sabia seguir senão a inspiração. Mas que seja esta a redação que em pequena me obrigavam a fazer.
In: Visão do esplendor: impressões leves. Francisco Alves Editora, 1975. p. 71
Mas, ao que eu saiba, não se comemora o dia da planta, ou melhor, da plantação. E esse dia é importante para a experiência humana das crianças e dos adultos. Plantar é criar na Natureza. Criação insubstituível por outro tipo qualquer de criação.
Lembro-me de quando eu era menina e fui passar o dia numa granja. Foi um dia glorioso: lá plantei um pé de milho com muito amor e excitação. Depois, de quando em quando, eu pedia notícias do que havia criado.
Mais tarde, na Suíça, plantei um pé de tomates numa lata grande, bonita. Quando começaram a aparecer os ainda pequenos tomates verdes e duros achei inacreditável que eu mesma lhes tivesse provocado o nascimento: eu entrara no mistério da Natureza. Cada manhã, ao acordar, a primeira coisa que fazia era ir examinar minuciosamente a planta: é como se a planta usasse a escuridão da noite para crescer. Esperar que algo amadureça é uma experiência sem par: como na criação artística em que se conta com o vagaroso trabalho do inconsciente. Só que as plantas são a própria inconsciência.
Nesse reino, que não é nosso, a planta nasce, cresce, amadurece e morre. Sem nenhum objetivo de satisfazer algum instinto. Ou estarei enganada, e há instintos os mais primários no reino vegetal? Meu tomateiro parecia ter tomates vermelhos porque assim queria, sem nenhuma outra finalidade que não a de ser vermelho, sem a menor intenção de ser útil. A utilização do tomate para se comer é problema dos humanos.
Um dos gestos mais belos e largos e generosos do homem, andando vagarosamente pelo campo lavrado, é o de lançar na terra as sementes.
E quando os tomates ficaram redondos, grandes e vermelhos? Chegara a hora da colheita. Não foi sem alguma emoção que vi num prato da mesa os tomates que eram mais meus que um livro meu. Só que não tive coragem de comê-los. Como se comê-los fosse um sacrilégio, uma desobediência à lei natural. Pois um tomateiro é arte pela arte. Sem nenhum proveito senão o de dar tomate.
O ritmo das plantas é vagaroso: é com paciência e amor que elas crescem.
Entrar no Jardim Botânico é como se fôssemos trasladados para um novo reino. Aquele amontoado de seres livres. O ar que se respira é verde. E úmido. É a seiva que nos embriaga de leve: milhares de plantas cheias da vital seiva. Ao vento as vozes translúcidas das folhas de plantas nos envolvem num suavíssimo emaranhado de sons irreconhecíveis. Sentada ali num banco, a gente não faz nada: fica apenas sentada deixando o mundo ser. O reino vegetal não tem inteligência e só tem um instinto, o de viver. Talvez essa falta de inteligência e de instintos seja o que nos deixa ficar tanto tempo sentada dentro do reino vegetal.
Lembro-me de que no curso primário a professora mandava cada aluno fazer uma redação sobre um naufrágio, um incêndio, o Dia da Árvore. Eu escrevia com a maior má vontade e com dificuldade: já então não sabia seguir senão a inspiração. Mas que seja esta a redação que em pequena me obrigavam a fazer.
In: Visão do esplendor: impressões leves. Francisco Alves Editora, 1975. p. 71
20 de set. de 2014
LULJETA LLESHANAKU (llbasan, Albânia,1968)
dei alguns passos atrás instintivamente
sobre os calcanhares
procurando o local exacto de
onde pudesse explorar sua profundidade.
Foi diferente com as pessoas:
Construi-as,
amei-as, mas não cheguei a amá-las plenamente.
Nenhuma chegou tão alto quanto o tecto azul.
Como numa casa inacabada, parecia haver uma folha de plástico por cima delas,
por vez do telhado
no princípio do outono chuvoso da minha compreensão.
19 de set. de 2014
SCHWEIZER HOF HOTEL :: Manuel António Pina
Maria Helena Vieira da Silva, 1981
Já aqui estive, já fiz esta viagem,
e estive neste bar neste momento
e escrevi isto diante deste espelho
e da minha imagem diante da minha imagem.
Não mudou nada, nem eu próprio; a mão
escreve os mesmos versos no papel obscuro.
Que aconteceu então fora de tudo?
De que esquecimento se lembra o coração?
Algum passado, alguma ausência,
se passam talvez a meu lado,
talvez tudo exista exilado
de alguma verdadeira existência.
E eu, os versos, o bar, o espelho,
sejamos só imagens noutro espelho
diante de algum Deus em cujo lasso
olhar se fundem outro e mesmo, tempo e espaço.
(n. 1943) Poesia Reunida. Assírio & Alvim, 2001
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