Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
16 de jul. de 2015
15 de jul. de 2015
Transfiguração :: Carlos Drummond de Andrade
Renina
extrai da matéria muda paisagens cantantes.
As linhas e os ritmos surgem no silêncio do metal
como a sereia surge do pélago.
É um bailar de movimentos regidos pela sabedoria
de arte severa.
Renina fere fundo. E meigamente.
Pela energia do seu lirismo
desnastram-se as virtualidades do real.
A visão se duplica. Será talvez inúmera.
A mão infalível de Renina
aereamente domina
a Terra, transfigurada em melodia visual.
In: Poesia Errante, 1988.
14 de jul. de 2015
O QUE É :: Adriane Garcia (Belo Horizonte - MG - 1973 )
Os peixes nadam
Os pássaros voam
Os mamíferos têm filhos
Dependurados em tetas
Assim como nascem e morrem células
E se reproduzem bactérias
Assim como sai vida
De ovos
E da terra brotam
Sementes
Eu sofro
Ser de minha natureza.
13 de jul. de 2015
Às coisas sou blasé :: ANA ESTAREGUI
finjo não ver beleza
nas pequenas xícaras
disfarço
a ternura
pelas as estampas
de frutas tropicais
na toalha
de plástico
da mesa da cozinha
[por fora lisinha
por dentro manta - que nem carpete]
dissimulo
indiferença às casquinhas
craqueladas
espalhadas
de pão francês
e ao tom marrom caramelo escuro
dos pratos duralex.
12 de jul. de 2015
Ainda lembrei de suas palavras :: Mia Couto
Valentin Serov
Ainda lembrei de suas palavras amadurecendo uma esperança para mim quando eu de tudo descria:-Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim: está sempre toda por viver.
In: O último voo do flamingo
11 de jul. de 2015
Perto muito perto :: Helder Moura Pereira
Robert Henri, 1903
Perto muito perto
Chego ao pé do limite,
o corpo cansado
traz as setas
do sono e a noite
esconde a alegria.
Onde tudo acontece
passam as imagens,
pressinto as nuvens
sobre os navios, o eco
de sons de aviso.
Como se inquieta
a cabeça tocando outra
na luz atravessada
de luzes. Chego à ponta
dos dedos, à esquina
da memória, adormeço, não
adormeço, canto
para adormecer.
Tudo parte de baixo
para a paisagem
do tecto, alegro-me
porque não é preciso
falar. O que sentes
está aí tão à vista
desaba sobre os olhos
o falso espaço
da casa. E a manhã
perde a luz
que só havia nas palavras.
(Para não falar)
10 de jul. de 2015
Flor de geladeira :: Ana Estaregui
Nancy Goldman
abri a geladeira com a ideia de apanhar figos rijos e cortá-los em fatias finíssimas e simétricas. imaginei interpolá-los a algo levemente amargo como pequeninas folhas almeirão ou endívias novas e produzir uma imagem que, vista de cima, parecesse ficção: uma flor de pétalas ora doces, ora amargas. ou como se o figo tivesse nascido junto com a endívia ou como se fosse natural aos dois essa combinação. imaginei apanhar umas sementes de zimbro, misturar ao sal grosso e moer sobre essa imagem [gosto da ideia de forjar uma espécie de intempérie artificial na paisagem – uma neve]. por fim, regaria com um fio de azeite contínuo e circular sobre isso que chamei de flor.
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