Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
23 de fev. de 2017
22 de fev. de 2017
Leite, leitura :: Paulo Leminski
Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
LEMINSKI, Paulo. O ex-estranho. São Paulo: Iluminuras, 1996.
19 de fev. de 2017
CAÇAR EM VÃO :: Armando Freitas Filho (Rio de Janeiro, 1940)
Às vezes escreve-se a cavalo.
Arremetendo, com toda a carga.
Saltando obstáculos ou não.
Atropelando tudo, passando
por cima sem puxar o freio -
a galope - no susto, disparado
sobre as pedras, fora da margem
feito só de patas, sem cabeça
nem tempo de ler no pensamento
o que corre ou o que empaca:
sem ter a calma e o cálculo
de quem colhe e cata feijão.
18 de fev. de 2017
17 de fev. de 2017
SOLIDÃO :: Oswald de Andrade
Chove chuva choverando
que a cidade de meu bem
está-se toda se lavando
Senhor
que eu não fique nunca
como esse velho inglês
aí ao lado
que dorme numa cadeira
à espera de visitas que não vêm
Chove chuva choverando
que o jardim de meu bem
está-se todo se enfeitando
A chuva cai
cai de bruços
A magnólia abre o pára-chuva
pára-sol da cidade
de Mário de Andrade
A chuva cai
escorre das goteiras do domingo
Chove chuva choverando
que a cidade de meu bem
está-se toda se molhando
Anoitece sobre os jardins
Jardim da Luz
Jardim da Praça da República
Jardim das platibandas
Noite
Noite de hotel
Chove chuva choverando
José Oswald Sousa de Andrade (São Paulo, 11 de janeiro de 1890 - São Paulo, 22 de outubro de 1954)
16 de fev. de 2017
O homem que descalçou os sapatos :: Uri Zvi Greenberg (1896-1981)
Van Gogh
Levantei-me e os meus dois olhos viram isto:
Não sabia quem era o homem,
o seu nome, ou a sua complicada história.
Era uma manhã toda de ouro,
e este homem marchou até ao poste eléctrico
como se caminhasse para uma fronteira,
e ali descalçou os sapatos,
e deixando-os para trás, como num limiar,
começou a andar descalço,
algures para além deste ponto final,
em direcção a um princípio sem fim, lá longe:
sem casa, ou cama, ou seio:
sem um pão ou um jarro de água…
leve e de mãos vazias.
Vi os seus ombros largos,
a sua alta estatura, os seus viris passos
indo embora, indo daqui para as suas distâncias,
sem a memória dos seus sapatos,
que esperam por ele.
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