8 de mar. de 2017

Beatriz :: Chico Buarque


Olha 
Será que ela é moça 
Será que ela é triste 
Será que é o contrário 
Será que é pintura 
O rosto da atriz 
Se ela dança no sétimo céu 
Se ela acredita que é outro país 
E se ela só decora o seu papel 
E se eu pudesse entrar na sua vida 

Olha 
Será que é de louça 
Será que é de éter 
Será que é loucura 
Será que é cenário 
A casa da atriz 
Se ela mora num arranha-céu 
E se as paredes são feitas de giz 
E se ela chora num quarto de hotel 
E se eu pudesse entrar na sua vida 

Sim, me leva pra sempre, Beatriz 
Me ensina a não andar com os pés no chão 
Para sempre é sempre por um triz 
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão 
Diz se é perigoso a gente ser feliz 

Olha 
Será que é uma estrela 
Será que é mentira 
Será que é comédia 
Será que é divina 
A vida da atriz 
Se ela um dia despencar do céu 
E se os pagantes exigirem bis 
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida

7 de mar. de 2017

Morte do leiteiro :: Carlos Drummond de Andrade

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.


Antologia Poética.  Editora Record, 40ª edição. p. 134.

6 de mar. de 2017

CANTO DA POBREZA :: Murilo Monteiro Mendes (Juiz de Fora, 13 de maio de 1901 - Lisboa, 13 de agosto de 1975)

Sentas-te à beira da noite
para fazer este poema,
este poema não é teu,
é da tinta e do papel.
Mas o que é teu, afinal?
Idéia de propriedade!
Nada é teu, nem de ninguém.
Teu passado não é teu,
nem sabes o que ele é.
Na neblina do passado
quase cego tu navegas,
mas um braço te pegou, 
te agarra, não larga mais.
- Este braço não é teu. -
O presente não é teu,
presente já é passado,
tu falaste, voz sumiu,
ah! nem o eco ficou.
Mas o futuro? é de Deus,
e Deus não é de ninguém.
Também não és de ninguém.
Tudo vês e tudo tocas,
tudo cheiras, tudo ouves,
nada fica nos teus olhos,
nada fica na tua mão,
no teu ouvido, nariz.
Levaste a noite ao altar,
sei que a noiva não é tua,
sei que ela também não é
do noivo que a possuiu,
ela não é de ninguém;
nem é de ti que conheces
os encantos dessa noiva
muito melhor que seu noivo.
Coisa alguma te pertence,
também não és de ninguém,
viste o mundo do telhado,
cheiraste o mundo, viraste
o namorado do mundo,
namorado eternamente:
é melhor ficar assim,
casar dá muito trabalho,
põe um número na gente,
põe um título na gente,
não se pode mais andar
desenvolto como antes,
a gente tem que prender
toda atenção num objeto,
a gente fica pensando
que é dono dalguma coisa,
que possui móvel de carne...
Mas eu não sou de ninguém.

5 de mar. de 2017

HINO À VIDA (1881) de Lou Salomé

Tão certo quanto o amigo ama o amigo,
Também te amo, vida-enigma
Mesmo que em ti tenha exultado ou chorado,
mesmo que me tenhas dado prazer ou dor.


Eu te amo junto com teus pesares,
E mesmo que me devas destruir,
Desprender-me-ei de teus braços
Como o amigo se desprende do peito amigo.
Com toda força te abraço!
Deixa tuas chamas me inflamarem,
Deixa-me ainda no ardor da luta
Sondar mais fundo teu enigma.

Ser! Pensar milênios!
Fecha-me em teus braços:
Se já não tens felicidade a me dar
Muito bem: dai-me teu tormento.

2 de mar. de 2017

Conselho aos jovens médicos :: Contardo Calligaris

O conselho vale também para os médicos menos jovens, os estudantes de medicina e os secundaristas que pensam em se tornar médicos. Na verdade, o conselho se estende a todos os que são ou serão pacientes, mesmo que não tenham a ambição de ser ou vir a ser médicos.

Já tinha assistido ao filme "A Garota Desconhecida", dos irmãos Dardenne, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Fui de novo no sábado passado e gostei tanto quanto da primeira vez. Não percam –e se apressem: em São Paulo, por exemplo, o filme está em apenas dois cinemas.

Admito, sou duplamente parcial: pelos irmãos Dardenne, que praticam um naturalismo sem violinos (na verdade, sem trilha musical alguma), representando um mundo no qual me sinto absolutamente em casa (o mesmo valia para filmes anteriores deles, por exemplo "Dois Dias, Uma Noite" ou "O Garoto de Bicicleta"); e sou parcial pela protagonista da "A Garota Desconhecida", que gostaria de encontrar na vida real –cuidado, falo da protagonista, não da atriz (ótima Adèle Haenel, aliás), a não ser que ela seja igual à protagonista.

Reconheço várias razões pelas quais amo a jovem médica Jenny Davin: porque não usa maquiagem e seca o cabelo com uma toalha; porque vive de jeans e dois moletons meio surrados; porque come o que tiver ou o que sobrar. O que é, ela não se importa consigo mesma? Não, é que ela tem mais o que fazer.

Continuo: porque ela só usa luvas descartáveis quando precisa proteger a queimadura infeccionada de um paciente, e não para auscultar nem mesmo para trocar o curativo no pé de um idoso diabético; porque fala pouco e sabe escutar; porque acorda de madrugada para atender a campainha sem nem sequer uma expressão de revolta; porque ela não tem preocupação de status; porque, enfim, ela traça sua vida (e sua carreira) a partir do que lhe parece ser sua responsabilidade.

E, cuidado: a responsabilidade que ela sente não tem nada a ver com a empatia ou a compaixão por "coitados" e deserdados. Ao contrário, Davin sabe (e diz ao seu estagiário) que os sentimentos só atrapalham a arte do diagnóstico. A responsabilidade que ela sente é quase um efeito lógico evidente (que não precisa de justificativa) da demanda que ela ouve.

Talvez (nossa) responsabilidade seja mesmo engajada automaticamente quando alguém pede ajuda. Isso não valeria só para os profissionais da saúde. E certamente vai além da resposta curta e fácil ao pedido de esmola.

Alguém se aproxima e fala comigo no farol? Tento escutar. Em geral, a mentira de quem pede me libera da responsabilidade. Precisa do dinheiro para uma passagem para Itu, onde a mãe etc., e eu não acredito? Posso fechar o vidro.

Agora, se você acredita na história que está ouvindo, estacione, desça do carro e aja mesmo. Há uma recompensa, já neste mundo: aceitar a responsabilidade da gente é quase sempre interessante.

Tento viver como Jenny Davin. Não é difícil, porque, em geral, gosto das pessoas, ainda mais quando têm vidas muito diferentes da minha. Mesmo assim, nem sempre consigo, mas Carlo Antonini, protagonista dos meus romances e do seriado "Psi" (HBO, chega agora à sua terceira temporada), vive por essa regra.

Agora, além da própria Jenny, há outras coisas, na Bélgica onde ela vive, que poderiam nos inspirar. Por que nosso sistema público de saúde não contempla um generalista de referência, que centralizaria o histórico médico de seus pacientes?

Quem teve a ideia de abolir as visitas domiciliares, mesmo noturnas, e de deixar, portanto, os pacientes correrem para entrar na fila de espera de um pronto-socorro (muito mais caro), em todos os casos de supostas "urgências"? Quem tirou desse médico (que sumiu) a autoridade para exigir, com um simples telefonema, que qualquer administração pública dispense a presença de um paciente que não pode se deslocar?

Jenny é o que a Europa tem de melhor, hoje. Não o assistencialismo, mas a presença efetiva de uma comunidade minimamente atenta –sem ideologismos, sem manhas sentimentais, por valores que nem é preciso mencionar.

A Bélgica é cinza. Mas, para dar dignidade à vida da gente, não é preciso de sol –nem de conforto ou de privilégio.

Nota: "A Garota Desconhecida" talvez seja o melhor filme que já vi sobre o que é ser médico –muito além de "Grey's Anatomy", "ER" e "House" combinados.

Folha de São Paulo  02 de março de 2017

Gentileza de Sylvia Plath

John Singer Sargent

Gentileza plana sobre minha casa.
Dama Gentileza, tão amável!
As jóias azuis e vermelhas de seus anéis enfumaçam
Nas janelas, os espelhos
Enchem-se de sorrisos.
O que é tão real quanto o choro de uma criança?
O grito de um coelho pode ser mais selvagem,
Mas não tem alma.
O açúcar pode curar qualquer coisa, segundo Gentileza.
O açúcar é um fluido necessário,
Seus cristais são pequenos cataplasmas.
Oh, gentileza, gentileza,
Delicadamente juntando pedaços!
Minhas sedas japonesas, borboletas desesperadas,
Podem ser trespassadas a qualquer momento, anestesiadas.
E aí vem você com uma xícara de chá
Envolta em vapor.
O jato de sangue é poesia,
Não há como estancá-lo.
Você me entrega duas crianças, duas rosas.

1 de mar. de 2017

Minha alegria :: Waly Salomão

Salvador Dali 

Minha alegria permanece eternidades soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos de filtros alquímicos
e não da causalidade natural.
Ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de incêndio.


Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...