20 de jan. de 2021

Arthur Rimbaud: "Bonne pensée du matin" Bom augúrio matutino

Gustave Caillebotte  


Verão, às quatro da madrugada

O sono do amor ainda demora.
Sob os bosques dispersa a aurora
            O odor da noite festejada.

Mas lá, em seus imensos canteiros
De obras, em mangas de camisa,
Ao sol das Hespérides, já se agitam
            Os carpinteiros.

Em seus desertos de serragem,
Caros lambris preparam, lentos,
Em que a riqueza da cidade
          Verá falsos firmamentos.

Ah! por esses belos Fabricantes,
Súditos de um rei da Babilônia,
Vênus! deixa um pouco os Amantes
          Com as almas em coroa.

          Rainha dos Pastores!
   Dai-lhes o trago deste dia,
   Para que em paz recobrem forças
À espera do banho de mar, ao mei: trad. de Ivo Barroso


Bonne pensée du matin

À quatre heures du matin, l'été,
Le sommeil d'amour dure encore.
Sous les bosquets, l'aube évapore
          L'odeur du soir fêté.

Mais là-bas dans l'immense chantier
Vers le soleil des Hespérides,
En bras de chemise, les charpentiers
          Déjà s'agitent.

Dans leur désert de mousse, tranquilles,
Ils préparent les lambris précieux
Où la richesse de la ville
          Rira sous de faux cieux.

Ah ! pour ces Ouvriers charmants
Sujets d'un roi de Babylone,
Vénus ! laisse un peu les Amants
          Dont l'âme est en couronne

          Ô Reine des Bergers !
  Porte aux travailleurs l'eau-de-vie.
  Pour que leurs forces soient en paix
En attendant le bain dans la mer, à midi.

RIMBAUD, Arthur. "Bonne pensée du matin" / "Bom augúrio matutino". In:_____. Poesia completa. Edição bilingue. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. 

11 de jan. de 2021

"Nossa porção de noite" :: Emily Dickinson

        Henri-Edmond Delacroix

Nossa porção de noite —
Nossa porção de aurora —
Nossa ausência de amor —
Nossa ausência de agrura —

Uma estrela, outra estrela
Que se extravia!
Uma névoa, outra névoa,
Depois – o Dia!
.....................
Our share of night to bear – 
Our share of morning – 
Our blank in bliss to fill
Our blank in scorning – 
 
Here a star, and there a star,      
Some lose their way!
Here a mist, and there a mist,
Afterwards – day!

DICKINSON, Emily. "Our share of night to bear" / "Nossa porção de noite". In:_____. não sou ninguém. Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Unicamp, 2015. 

Para o Zé :: Adélia Prado


Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.

Divago, quando o que quero é só dizer te amo.

Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.

Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:

"Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros".

Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.

Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.

Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.

Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho.

Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.

Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.

Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos, a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.


Bagagem. Editora Guanabara, 1986. p. 107 

8 de jan. de 2021

CAFÉ ORFEU :: Manuel António Pina

Nunca tinha caído

de tamanha altura em mim

antes de ter subido

às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso

como de uma súbita ausência

ou como se tivesse lá ficado

e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso

a minha vida parecia

a vida de outra pessoa

que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente

como se antes do teu sorriso

alguém(eu provavelmente)

nunca tivesse existido.


4 de jan. de 2021

Sempre :: Noemi Jaffe

Alexander Liberman


mesmo que a física há muito tempo tenha descoberto que o tempo é irreversível e que caminhamos sem volta para um fim qualquer, todo fim de ano teima em negar essa lei e nos faz acreditar, como num poema, como nas colheitas, como nos nascimentos, que não é nada disso. tudo vai e vai se repetir para sempre e termos chegado a dezembro significa que felizmente recomeçará janeiro e celebraremos humanamente a repetição.

28 de dez. de 2020

Para comer depois :: Adélia Prado


Matizes
Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
A campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
‘Eh bobagem!’
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
em meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo.

in: Bagagem , 1976.

25 de dez. de 2020

Outro natal :: Adriano Nunes

Senhor, liberta-nos
Do que está lá,
Fora do alcance
Do coração.
Dá-nos apenas
Coisas pequenas

E alguma dúvida.
Nada queremos
Das esperanças.
Senhor, liberta-nos
Da angústia infinda,
Dá-nos o mundo!

.

24 de dez. de 2020

Glauco Mattoso, "Revisitado"



Quem disse que o Natal é só mercado?
Por trás do panetone ou da castanha
está um publicitário, uma campanha,
o lucro, as estatísticas, o Estado.

É certo. Mas o espírito arraigado
mais dura que o presente que se ganha,
mais lembra que um peru, que uma champanha
a alguém com mais futuro que passado.

Pois ela, a criancinha, é quem segura
o tempo, em seu efêmero momento,
salvando algo de júbilo ou ternura.

Esqueça-se o comércio! Ainda tento
rever cada Natal, cada gravura
em meio a tanto adulto rabugento..

15 de dez. de 2020

Hélio Pellegrino, Carta a Fernando Sabino

Quanto você faz 20 anos está de manhã olhando o sol do meio dia. Aos 60 são seis e meia da tarde e você olha a boca da noite. Mas a noite também tem seus direitos. Esses 60 anos valeram a pena. Investi na amizade, no capital erótico, e não me arrependo. A salvação está em você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio nesse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!
Carta a Fernando Sabino, revista pelo autor ao fazer 60 anos

10 de dez. de 2020

Precisa-se :: Clarice Lispector

Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar. P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.

fonte: A descoberta do mundo. Rocco, 1999.

Clarice Lispector:: pinturas



    “Entro lentamente na escrita assim como já entrei na pintura. 
É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, 
cores e palavras.” 
 Água viva (1973)


















 

9 de dez. de 2020

Morte de uma baleia :: Clarice Lispector




 

 

Será que morrer é o último prazer terreno ?


Por outro lado, estou hoje um pouco cansada e é sobre o prazer do cansaço dolorido que vou falar. Todo prazer intenso toca no limiar da dor. Isso é bom. O sono, quando vem, é como um leve desmaio, um desmaio de amor. Morrer deve ser assim: por algum motivo estar-se tão cansado que só o sono da morte compensa. Morrer às vezes parece um egoísmo. Mas quem morre às vezes precisa muito. Será que morrer é o último prazer terreno?

Fonte: A descoberta do mundo. Rocco

8 de dez. de 2020

Lenilde Freitas :: Narciso

A flor narciso

tem seu mistério.


Depois que brota no topo da haste,

vive alguns dias e fenece.


Suas folhas curvas em dor

morrem também.


Como o bulbo vivo permanece,

levá-la ao escuro é o que convém,


deixar que o tempo passe.


Ao voltar à luz a flor renasce.


FREITAS, Lenilde.  Esboço de Eva.  São Paulo: Roswitha Kempf / Editores,  1987.



 

7 de dez. de 2020

Nonada de Guimarães Rosa

Via Lactea
"... E eu sou nada, não sou nada, não sou nada... 
Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... 
Sou uma coisinha... nenhuma, o senhor sabe? 
Sou nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. 
O senhor sabe? 
De nada. De nada...De nada...” 

Rosa, João Guimarães: Grande Sertão: Veredas. 19ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 366

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...