11 de fev. de 2021

Das vantagens de ser bobo :: Clarice Lispector

                                                                                          Chagall

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

originalmente publicado no Jornal do Brasil, 12 de setembro de 1970.


4 de fev. de 2021

Por que não sou pintor Frank O'Hara


Juan Bosco


Não sou pintor, e sim poeta.
Por quê? Acho que eu preferia
ser pintor, só que não sou. Bem,

por exemplo, o Mike Goldberg
está começando um quadro. Vou lá.
“Senta e bebe alguma coisa”, ele
diz. Bebo. Bebemos. Eu olho
pro quadro. “Você escreveu SARDINHAS.”
“Tinha que pôr alguma coisa ali.”
“Ah.” Os dias passam e eu
vou lá de novo. O quadro avança,
eu vou embora, e os dias vão
passando. Eu volto. O quadro está
pronto. “Cadê SARDINHAS?”
Só ficaram umas
letras. “Era demais”, diz Mike.

Mas e eu? Um dia eu penso numa
cor: laranja. Escrevo um verso sobre
laranja. E logo é uma página
inteira de palavras, não versos.
Depois outra página. Devia
haver muito mais, não laranja, mas
palavras, sobre o horror do laranja e
da vida. Os dias passam. Está até
em prosa, sou poeta mesmo. Meu poema
está pronto, e ainda nem falei em
laranja. Doze poemas, e o nome é
LARANJAS. E um dia numa galeria
vejo o quadro do Mike: SARDINHAS.
...............

Why I am not a painter

I am not a painter, I am a poet.
Why? I think I would rather be
a painter, but I am not. Well,

for instance, Mike Goldberg
is starting a painting. I drop in.
“Sit down and have a drink” he
says. I drink; we drink. I look
up. “You have SARDINES in it.”
“Yes, it needed something there.”
“Oh.” I go and the days go by
and I drop in again. The painting
is going on, and I go, and the days
go by. I drop in. The painting is
finished. “Where’s SARDINES?”
All that’s left is just
letters, “It was too much," Mike says.

But me? One day I am thinking of
a color: orange. I write a line
about orange. Pretty soon it is a
whole page of words, not lines.
Then another page. There should be
so much more, not of orange, of
words, of how terrible orange is
and life. Days go by. It is even in
prose, I am a real poet. My poem
is finished and I haven’t mentioned
orange yet. It’s twelve poems, I call
it ORANGES. And one day in a gallery
I see Mike’s painting, called SARDINES.

O'HARA, Frank. "Why I am not a painter" / "Por que não sou pintor". In:_____. Meu coração está no bolso. Trad. de Beatriz Bastos e Paulo Henriques Britto. São Paulo: Luna Parque, 2017.

28 de jan. de 2021

Hoje:: Frank O'Hara


Ah! cangurus, paetês, milk-shakes!

Que beleza! Pérolas, gaitas,
jujubas, aspirinas! todas essas
coisas sobre as quais sempre se fala

ainda fazem de um poema uma surpresa!
Elas estão conosco todos os dias mesmo
que em casamatas e catafalcos. São coisas
com sentido. São fortes feito pedra.

.......................
Today
Oh! kangaroos, sequins, chocolate sodas!
You really are beautiful! Pearls,
harmonicas, jujubes, aspirins! all
the stuff they’ve always talked about
 
still makes a poem a surprise!
These things are with us every day
even on beachheads and biers. They
do have meaning. They’re strong as rocks.

O'HARA, Frank. "Today"/"Hoje". In:_____. Meu coração está no bolso. Trad. de Beatriz Bastos e Paulo Henriques Britto. São Paulo: Luna Parque, 2017.

20 de jan. de 2021

Arthur Rimbaud: "Bonne pensée du matin" Bom augúrio matutino

Gustave Caillebotte  


Verão, às quatro da madrugada

O sono do amor ainda demora.
Sob os bosques dispersa a aurora
            O odor da noite festejada.

Mas lá, em seus imensos canteiros
De obras, em mangas de camisa,
Ao sol das Hespérides, já se agitam
            Os carpinteiros.

Em seus desertos de serragem,
Caros lambris preparam, lentos,
Em que a riqueza da cidade
          Verá falsos firmamentos.

Ah! por esses belos Fabricantes,
Súditos de um rei da Babilônia,
Vênus! deixa um pouco os Amantes
          Com as almas em coroa.

          Rainha dos Pastores!
   Dai-lhes o trago deste dia,
   Para que em paz recobrem forças
À espera do banho de mar, ao mei: trad. de Ivo Barroso


Bonne pensée du matin

À quatre heures du matin, l'été,
Le sommeil d'amour dure encore.
Sous les bosquets, l'aube évapore
          L'odeur du soir fêté.

Mais là-bas dans l'immense chantier
Vers le soleil des Hespérides,
En bras de chemise, les charpentiers
          Déjà s'agitent.

Dans leur désert de mousse, tranquilles,
Ils préparent les lambris précieux
Où la richesse de la ville
          Rira sous de faux cieux.

Ah ! pour ces Ouvriers charmants
Sujets d'un roi de Babylone,
Vénus ! laisse un peu les Amants
          Dont l'âme est en couronne

          Ô Reine des Bergers !
  Porte aux travailleurs l'eau-de-vie.
  Pour que leurs forces soient en paix
En attendant le bain dans la mer, à midi.

RIMBAUD, Arthur. "Bonne pensée du matin" / "Bom augúrio matutino". In:_____. Poesia completa. Edição bilingue. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. 

11 de jan. de 2021

"Nossa porção de noite" :: Emily Dickinson

        Henri-Edmond Delacroix

Nossa porção de noite —
Nossa porção de aurora —
Nossa ausência de amor —
Nossa ausência de agrura —

Uma estrela, outra estrela
Que se extravia!
Uma névoa, outra névoa,
Depois – o Dia!
.....................
Our share of night to bear – 
Our share of morning – 
Our blank in bliss to fill
Our blank in scorning – 
 
Here a star, and there a star,      
Some lose their way!
Here a mist, and there a mist,
Afterwards – day!

DICKINSON, Emily. "Our share of night to bear" / "Nossa porção de noite". In:_____. não sou ninguém. Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Unicamp, 2015. 

Para o Zé :: Adélia Prado


Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.

Divago, quando o que quero é só dizer te amo.

Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.

Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:

"Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros".

Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.

Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.

Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.

Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho.

Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.

Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.

Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos, a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.


Bagagem. Editora Guanabara, 1986. p. 107 

8 de jan. de 2021

CAFÉ ORFEU :: Manuel António Pina

Nunca tinha caído

de tamanha altura em mim

antes de ter subido

às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso

como de uma súbita ausência

ou como se tivesse lá ficado

e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso

a minha vida parecia

a vida de outra pessoa

que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente

como se antes do teu sorriso

alguém(eu provavelmente)

nunca tivesse existido.


4 de jan. de 2021

Sempre :: Noemi Jaffe

Alexander Liberman


mesmo que a física há muito tempo tenha descoberto que o tempo é irreversível e que caminhamos sem volta para um fim qualquer, todo fim de ano teima em negar essa lei e nos faz acreditar, como num poema, como nas colheitas, como nos nascimentos, que não é nada disso. tudo vai e vai se repetir para sempre e termos chegado a dezembro significa que felizmente recomeçará janeiro e celebraremos humanamente a repetição.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...