Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
22 de fev. de 2022
21 de fev. de 2022
A feira:: Eduardo Galeano
A ameixa gorda, de puro caldo que te inunda de doçura, deve ser comida, como você me ensinou, com os olhos fechados. A ameixa vermelhona, de polpa apertada e vermelha, deve ser comida sendo olhada.
Você gosta de acariciar o pêssego e despi-lo a faca, e prefere que as maçãs venham opacas para que cada um possa fazê-las brilhar com as mãos.
O limão inspira a você respeito, e as laranjas, riso. Não há nada mais ridículo que o abacaxi, com sua couraça de guerreiro medieval.
Os tomates e os pimentões parecem nascidos para se exibirem de pança para o sol nas cestas, sensuais de brilhos e preguiças, mas na realidade os tomates começam a viver sua vida quando se misturam ao orégano, ao sal e ao azeite, e os pimentões não encontram seu destino até que o calor do forno os deixa em carne viva e nossas bocas os mordem com desejo.
As especiarias formam, na feira, um mundo à parte. São minúsculas e poderosas. Não há carne que não se excite e jorre caldos, carne de vaca ou de peixe, de porco ou de cordeiro, quando penetrada pelas especiarias. Nós temos sempre presente que se não fosse pelos temperos não teríamos nascido na América, e nos teria faltado magia na mesa e nos sonhos. Ao fim e ao cabo, foram os temperos que empurraram Cristóvão Colombo e Simbad, o Marujo.
As folhinhas de louro têm uma linda maneira de se quebrarem em sua mão antes de cair suavemente sobre a carne assada ou os ravioles. Você gosta muito do romeiro e da verbena, da noz-moscada, da alfavaca e da canela, mas nunca saberá se é por causa dos aromas, dos sabores ou dos nomes. A salsinha, tempero dos pobres, leva uma vantagem sobre todos os outros: é o único que chega aos pratos verde e vivo e úmido de gotinhas frescas.
Mulheres
15 de fev. de 2022
Ainda não sei:: Virgínia do Carmo
Ainda não sei como contar-te que cresci
sem mar. Que andei a verter sangue a vida
toda, de coração golpeado pelas cercas vivas
dos meus lugares. Não sei como contar-te
da minha ânsia de fugir, de correr até à praia
e cegar a memória, de como me atirei
em desespero contra os espinhos, e de como
sangrei, exausta, na sombra dos fracassos.
Agora cheguei ao mar e o sal arde-me
nas feridas. Tenho um chão de areia quente
que me queima os pés, tão gastos de correr.
Cheguei ao mar. Ao espanto comovente
do mar, e permaneço imóvel. Tão quieta
como as rochas ao longe.
Sou livre e não me movo.
Não sei como se faz isto de viver.
In: Ecos de Green Rose. Poética, 2019, p. 35
14 de fev. de 2022
7 de fev. de 2022
MANEIRA DE AMAR : Carlos Drummond de Andrade
O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza.
Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se contra a luz para não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra, na devida ocasião.
O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo parado diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho.
Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. "Você o tratava mal, agora está arrependido?" "Não, respondeu, estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava".
|Contos plausíveis. J. Olympio, 1981.
5 de fev. de 2022
Caixa de Ferramentas:: Marcilio Godoi
Um caco de azulejo sobre uma flanela surrada
algumas contas dispersas de um terço desfeito.
E o passado chegando em fiapos.
Um saco de retalhos, uma torneira fosca
entre parafusos. Um anel que vinho no doce.
Miçangas no ar a morrinha do tempo.
Um pé de meia solteira, de onde surgiu
aquele botão florido, um ajuste no paletó do tio.
Última lembrança da louça antes de partir.
Um número descolado da fachada
que poupou tantas visitas
e extraviou todas as cartas.
Uma xícara rachada, guardada bem no desenho da moça.
Uma carcaça de chuveiro, um vazamento na saudade
uma resistência, queimada.
O pai à cabeceira desfiando com a cadeira de palhinha.
Nove lustres de vidro, uma beleza passageira
no dia do eterno despercebido.
Uma renda quase branca, no tom dos ancestrais.
Um café tão doce quanto o dedinho de prosa,
que cantiga era aquela mesmo?
Um santinho colorido do qual esqueci o nome
um bordado no puído, um outro jeito de ter brio.
Mecha de cabelo, lata de engraxar sapato.
A dor nos panos de pranto, o medo às três da manhã.
Ter de lidar com o tanto de saudade da irmã
e o incômodo das rimas acidentais.
Um cabo de panela solto, um mimo, um agnus-dei
uma piada esquecida, frouxa, uma rua que me lembra
o que na ferrugem dela vai comigo.
Um vidro de graxa, uma polia desencaixada
para sempre de qualquer expectativa.
A chave certa, sem fechadura.
O botão da cortina encomendada pro casório, uma aspirina
diária pra modo de não enfartar, um palavrório
providencial, dissolvido na dúvida.
Uma costela de adão num vaso equilibrado
sobre uma lata de goiabada. Um nó de pinho de riga
no chão, um taco tirado do peito.
Uma concha achada incrível, no mar de Guarapari
um susto horizontal, a promessa de voltar
qualquer hora à Mantiqueira.
Um prego no colchão me levanta e deitam molas
brocas de cisma, pigarro na garganta.
27 de jan. de 2022
24 de jan. de 2022
O pombo flâneur :: Alex Varella
Todo pombo é flâneur, mas o carioca ainda mais.
Conta Paulo Mendes Campos que era verão,
e dois deles tinham marcado um encontro,
às cinco azul em ponto,
nos céus do Rio de Janeiro.
Os tradicionais relógios da Mesbla e da Central marcavam a hora,
mas não marcavam o tempo,
(nenhum relógio marca o tempo).
Atravessando a cidade num fio de luz,
a vista ardendo de azul,
aquele pombo se atrasou
e, arrulhando,
em uma sentença se explicou:
“-- Desculpe , meu amor,
mas o dia estava tão bonito que eu vim andando;
eu tinha de vir andando!”
VARELLA, Alex. O pombo flâneur.
17 de jan. de 2022
Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...
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Tem de haver mais Agora o verão se foi E poderia nunca ter vindo. No sol está quente. Mas tem de haver mais. Tudo aconteceu, Tu...
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