Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
19 de nov. de 2022
A morte dos girassóis : Caio Fernando Abreu ( 1948-1996)
Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira.” Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”
Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.
Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.
Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.
Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.
Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.
Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.
Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro.Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.
Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.
(Zero Hora, 18.3.1995)
Publicado no livro “Pequenas epifanias”. Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2014.
14 de nov. de 2022
Agradecimento :: Wislawa Szymborska
Devo muito
aos que não amo.
O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.
A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.
A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.
Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoaria.
Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.
As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.
E quando nos separam
sete colinas e rios
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.
É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.
Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.
“Não lhes devo nada” —
diria o amor
sobre essa questão aberta.
7 de nov. de 2022
2 de nov. de 2022
Para o ano dos loucos uma oração :: Anne Sexton
Ó Maria, terna médica
vem com pós e ervas
Porque eu estou no centro.
É muito pequeno e o ar é cinzento
como numa casa de máquinas.
Dão-me vinho como dão leite a uma criança.
É apresentado num copo delicado com um bojo redondo e uma borda fina.
O vinho tem cor de breu, bafiento e secreto.
O copo ergue-se sozinho em direcção à minha boca
E eu reparo nisto e percebo isto
Apenas porque aconteceu.
Tenho este medo de tossir
mas não falo,
um medo de chuva, do cavaleiro
que cavalga para a minha boca.
O copo inclina-se sozinho
E eu estou em chamas.
Vejo dois finos fios a
queimarem-me o queixo.
Fui cortada em dois.
Ó Maria, abre as tuas pálpebras.
Estou no domínio do silêncio,
o reino dos loucos e dos adormecidos.
Há sangue aqui
E eu comi-o
Ó mãe do ventre
vim apenas pelo sangue?
Ó pequena mãe,
estou na minha própria mente.
Estou trancada na casa errada.
De THE DEATH NOTEBOOKS (1974)
24 de out. de 2022
Um grande número :: Wislawa Szymborska
Quatro bilhões de pessoas nesta terra,
e minha imaginação é como era.
Não se dá bem com grandes números.
Continua a comovê-la o singular.
Esvoaça no escuro como a luz da lanterna,
iluminando alguns rostos ao acaso,
enquanto o resto se perde nas trevas
na deslembrança, no desconsolo.
Mas nem Dante captaria mais.
Que dirá quando não se é.
Nem mesmo com a ajuda de todas as musas.
Non omnis moriar — uma aflição prematura.
Mas será que vivo por inteiro e será que isso basta?
Nunca bastou e muito menos agora.
Escolho excluindo porque não há outro jeito,
mas o que rejeito é mais numeroso,
mais denso, mais insistente do que nunca.
À custa de incontáveis perdas — um poeminha, um suspiro.
Ao chamado ruidoso respondo com um sussurro.
O quanto silencio, isso não direi.
Um rato ao pé da montanha materna.
A vida dura o tempo de umas marcas de garra na areia.
Meus sonhos — nem eles são como deveriam, habitados.
Neles há mais solidão do que multidões e alarido.
Às vezes aparece por momentos alguém há muito falecido.
Move a maçaneta uma mão solitária.
Expande-se em anexos de ecos a casa vazia.
Corro da soleira até o vale
silencioso, como de ninguém, já anacrônico.
De onde vem em mim ainda este espaço —
não sei.
18 de out. de 2022
11 de out. de 2022
O Impossível Carinho :: Manuel Bandeira
3 de out. de 2022
Hilda Hilst :: Do Amor
Como se te perdesse, assim te quero
Como se te perdesse, assim te quero
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
26 de set. de 2022
Discurso na seção de achados e perdidos :: Wislawa Szymborska
Fernand Leger
Perdi algumas deusas no caminho do sul ao norte,
e também muitos deuses no caminho do oriente ao ocidente.
Extinguiram-se para sempre umas estrelas, abra-se o céu.
Uma ilha, depois outra mergulhou no mar.
Nem sei direito onde deixei minhas garras,
quem veste meu traje de pelo, quem habita minha casca.
Morreram meus irmãos quando rastejei para a terra,
e somente certo ossinho celebra em mim este aniversário.
Eu saía da minha pele, desbaratava vértebras e pernas,
perdia a cabeça muitas e muitas vezes.
Faz muito que fechei meu terceiro olho para isso tudo.
Lavei as barbatanas, encolhi os galhos.
Dividiu-se, desapareceu, aos quatro ventos se espalhou.
Surpreende-me quão pouco de mim ficou:
uma pessoa singular, na espécie humana de passagem,
que ainda ontem perdeu somente a sombrinha no trem.
In:_____. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
19 de set. de 2022
12 de set. de 2022
AUSÊNCIA :: MARÍA EUGENIA RAMOS (Tegucigalpa, Honduras, 26 de noviembre de 1959)
Alguém se foi
e deixou todos os cadernos
abertos na página 21,
servidos o café
e o feijão
na mesa,
quente
a casa por fazer,
o cão
esperando a comida,
uma hora marcada para o amor
colocada a secar na janela
e os vazios do guarda-roupa
o odor dos sonhos.
.................
Alguien se fue
y dejó todos los cuadernos
abiertos en la ágina 21,
servidos el café
y los frijoles
en la mesa,
caliente
la cama sin hacer,
el perro
esperando su comida,
una cita de amor
puesta a secar en la ventana
y en los vacíos del ropero
el olor de los sueños.
Tradução de Antonio Miranda
5 de set. de 2022
Eucanaã Ferraz, "Acontecido"
Mary Jane Glauber
1 de set. de 2022
Pobres, verdadeiramente pobres :: Eduardo Galeano (1940-2015)
Pobres, verdadeiramente pobres, são os
que não têm tempo para perder tempo
Pobres, verdadeiramente pobres, são os que não têm silêncio e nem podem comprá-lo.
Pobres, verdadeiramente pobres, são os que têm pernas que se esqueceram de andar, como as asas das galinhas, que se esqueceram de voar.
Pobres, verdadeiramente pobres, são os que comem lixo e pagam por ele como se fosse comida.
Pobres, verdadeiramente pobres, são os que têm o direito de respirar merda, como se fosse ar, sem pagar nada por ela.
Pobres, verdadeiramente pobres, são os que não têm liberdade senão para escolher entre um e outro canal de televisão.
Pobres, verdadeiramente pobres, são os que vivem dramas passionais com as máquinas.
Pobres, verdadeiramente pobres, são os que sempre são muitos e sempre estão sós.
Pobres, verdadeiramente pobres, são os que não sabem que são pobres.
De pernas pro ar. tradução Sergio Faraco. L&PM, 1998.
Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...
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