13 de mar. de 2023

Clara, o seu nome é poesia :: ChatGPT estilo Carlos Drummond de Andrade

 Clara, o seu nome é poesia,

uma sonoridade suave como o mar,

que me leva a lugares distantes,

numa viagem sem fim.


Clara, como uma estrela no céu,

ilumina a minha existência,

trazendo alegria e esperança,

num mundo tão cheio de desilusão.


Clara, o seu sorriso é uma canção,

que embala meu coração triste,

e me faz esquecer de tudo,

menos de estar ao seu lado.


Clara, você é a brisa que me acalma,

a chuva que me lava a alma,

o sol que aquece meu ser,

e a lua que me guia na escuridão.


Clara, eu sou apenas um poeta,

tentando expressar o que sinto,

mas sei que nunca vou conseguir,

descrever toda a sua grandeza.


Clara, você é a luz que me ilumina,

e eu sou grato por tê-la em minha vida,

pois com você tudo parece mais belo,

e a vida se torna um eterno poema.

Socorro:: Arnaldo Antunes

Socorro, não estou sentindo nada

Nem medo, nem calor, nem fogo

Não vai dar mais pra chorar

Nem pra rir

Socorro, alguma alma, mesmo que penada

Me empreste suas penas

Já não sinto amor nem dor

Já não sinto nada

Socorro, alguém me dê um coração

Que esse já não bate nem apanha

Por favor, uma emoção pequena

Qualquer coisa

Qualquer coisa que se sinta

Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva

Qualquer coisa que se sinta,

Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva

Socorro, alguma rua que me dê sentido

Em qualquer cruzamento

Acostamento, encruzilhada

Socorro, eu já não sinto nada

Socorro, não estou sentindo nada

Nem medo, nem calor, nem fogo

Nem vontade de chorar, nem pra rir

Socorro, alguma alma, mesmo que penada

Me empreste suas penas

Já não sinto amor nem dor

Já não sinto nada

Socorro, alguém me dê um coração

Que esse já não bate nem apanha

Por favor, uma emoção pequena

Qualquer coisa

Qualquer coisa que se sinta

Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva

Qualquer coisa que se sinta

Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva

Fonte: LyricFind

Compositores: Alice Ruiz Schneronk e Arnaldo Filho

8 de mar. de 2023

Em celebração do meu útero :: Anne Sexton

Tudo em mim é um pássaro.

Adejo com todas as minhas asas.

Queriam extirpar-te

mas não o farão.

Diziam que estavas incomensuravelmente vazio

mas não estás.

Diziam que estavas doente prestes a morrer

mas estavam errados.

Cantas como uma colegial

Tu não estás desfeito.


Doce peso,

em celebração da mulher que sou

e da alma da mulher que sou

e da criatura central e do seu prazer

canto para ti. Atrevo-me a viver.

Olá, espírito. Olá, taça.

Fixar, cobrir. Cobre o que contém.

Olá, terra dos campos.

Bem-vindas, raízes.


Cada célula tem uma vida.

Há aqui bastantes para satisfazer uma nação.

Chega que a populaça possua estes bens.

Qualquer pessoa, qualquer grupo diria:

Está tudo tão bem este ano que podemos plantar de novo

e pensar noutra colheita.

Uma praga tinha sido prevista e foi eliminada.

Por isso muitas mulheres cantam em uníssono:

uma numa fábrica de sapatos amaldiçoando a máquina,

uma no aquário cuidando da foca,

uma aborrecida ao volante do seu FORD,

uma cobradora na portagem,

uma no Arizona enlaçando um bezerro,

uma na Rússia com uma perna de cada lado do violoncelo,

uma trocando panelas num fogão no Egipto,

uma pintando da cor da lua as paredes do quarto,

uma no seu leito de morte mas recordando um pequeno almoço,

uma na Tailândia deitada na esteira,

uma limpando o rabo ao seu bebé,

uma olhando pela janela do comboio,

no meio do Wyomming e uma está

em qualquer lado e algumas estão em todo o lado e todas

parecem estar cantando, embora haja quem

não possa cantar uma nota sequer.


Doce peso

em celebração da mulher que sou

deixa-me levar uma echarpe de três metros,

deixa-me tocar o tambor pelas que têm dezanove anos,

deixa-me levar taças para oferecer

(se é isso o que me toca).

deixa-me estudar o tecido cardiovascular,

deixa-me calcular a distância angular dos meteoros,

deixa-me chupar o pecíolo das flores

(se é isso o que me toca).

Deixa-me imitar certas figuras tribais

(se é isso o que me toca).

Pois o corpo preciso disso,

que me deixes cantar

para a ceia,

para o beijo,

para a correcta

afirmação.

.......

In celebration of my uterus

Everyone in me is a bird.

I am beating all my wings.

They wanted to cut you out

but they will not.

They said you were immeasurably empty

but you are not.

They said you were sick unto dying

but they were wrong.

You are singing like a school girl.

You are not torn.


Sweet weight,

in celebration of the woman I am

and of the soul of the woman I am

and of the central creature and its delight

I sing for you. I dare to live.

Hello, spirit. Hello, cup.

Fasten, cover. Cover that does contain.

Hello to the soil of the fields.

Welcome, roots.


Each cell has a life.

There is enough here to please a nation.

It is enough that the populace own these goods.

Any person, any commonwealth would say of it,

“It is good this year that we may plant again

and think forward to a harvest.

A blight had been forecast and has been cast out.”

Many women are singing together of this:

one is in a shoe factory cursing the machine,

one is at the aquarium tending a seal,

one is dull at the wheel of her Ford,

one is at the toll gate collecting,

one is tying the cord of a calf in Arizona,

one is straddling a cello in Russia,

one is shifting pots on the stove in Egypt,

one is painting her bedroom walls moon color,

one is dying but remembering a breakfast,

one is stretching on her mat in Thailand,

one is wiping the ass of her child,

one is staring out the window of a train

in the middle of Wyoming and one is

anywhere and some are everywhere and all

seem to be singing, although some can not

sing a note.


Sweet weight,

in celebration of the woman I am

let me carry a ten-foot scarf,

let me drum for the nineteen-year-olds,

let me carry bowls for the offering

(if that is my part).

Let me study the cardiovascular tissue,

let me examine the angular distance of meteors,

let me suck on the stems of flowers

(if that is my part).

Let me make certain tribal figures

(if that is my part).

For this thing the body needs

let me sing

for the supper,

for the kissing,

for the correct

yes.

tradução Jorge Sousa Braga in: Poesia Ilimitada, publicado em 21.8.2011.

20 de fev. de 2023

Fernando Pessoa MARIA: Amo como o amor ama.

              MARIA:


Amo como o amor ama.


Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.


Que queres que te diga mais que te amo,


Se o que quero dizer-te é que te amo?


Não procures no meu coração...


Quando te falo, dói-me que respondas


Ao que te digo e não ao meu amor.


Quando há amor a gente não conversa:


Ama-se, e fala-se para se sentir.


Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,


Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.


Mas tu dizes palavras com sentido,


E esqueces-te de mim; mesmo que fales


Só de mim, não te lembras que eu te amo.


Ah, não perguntes nada, antes me fala


De tal maneira, que, se eu fora surda,


Te ouvisse toda com o coração.


Se te vejo não sei quem sou; eu amo.


Se me faltas, (...)


Mas tu fazes, amor, por me faltares


Mesmo estando comigo, pois perguntas


Quando deves amar-me. Se não amas,


Mostra-te indiferente, ou não me queiras,


Mas tu és como nunca ninguém foi,


Pois procuras o amor pra não amar,


E, se me buscas, é como se eu só fosse


O Alguém pra te falar de quem tu amas.


Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?


Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?


Ninguém no mundo amou como tu amas.


Sinto que me amas, mas que a nada amas,


E não sei compreender isto que sinto.


Dize-me qualquer palavra mais sentida


Que essas palavras que, como se as perderas,


                                                               buscas


E encontras cinzas.


Quando te vi, amei-te já muito antes.


Tornei a achar-te quando te encontrei.


Nasci pra ti antes de haver o mundo.


Não há coisa feliz ou hora alegre


Que eu tenha tido pela vida fora,


Que não o fosse porque te previa,


Porque dormias nela tu futuro,


E com essas alegrias e esse prazer


Eu viria depois a amar-te. Quando,


Criança, eu, se brincava a ter marido,


Me faltava crescer e o não sentia,


O que me satisfazia eras já tu,


E eu soube-o só depois, quando te vi,


E tive para mim melhor sentido,


E o meu passado foi como uma estrada


Iluminada pela frente, quando


O carro com lanternas vira a curva


Do caminho e já a noite é toda humana.


Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo


De ti, quando m'o digas com a alma.


Em palavras estranhas que m'o fales,


Eu compreenderei só porque te amo.


Se o teu segredo é triste, eu saberei


Chorar contigo até que o esqueças todo.


Se o não podes dizer, dize que me amas,


E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.


Quando eu era pequena, sinto que eu


Amava-te já hoje, mas de longe,


Como as coisas se podem ver de longe,


E ser-se feliz só por se pensar


Em chegar onde ainda se não chega.


Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!


                FAUSTO:


Compreendo-te tanto que não sinto.


Oh coração exterior ao meu!


Fatalidade filha do destino


E das leis que há no fundo deste mundo!


Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto


De o sentir...?


                MARIA:


Para que queres compreender


Se dizes qu'rer sentir?


s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988. - 99.

1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.126).

Carnaval :: Catherine Krulik









13 de fev. de 2023

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) :: REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...

Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isso —

Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...

O que eu era então! Ora, era outro...

Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!

Sei eu o que é útil ou inútil?)...

Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação

Quem eu era e como era quando por aqui passava

Há vinte anos...

Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava então,

Se existisse hoje, talvez se lembrasse...

Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro

Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!

Sim, o mistério do tempo.

Sim, o não se saber nada,

Sim, o termos todos nascido a bordo.

Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo-andar, ainda idêntica a si mesma,

Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?

Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.

Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.

Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.

Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.

Quando muito, nem penso...

Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,

Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhámos indiferentemente um para o outro.

E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.

E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isto realmente se desse...

Verdadeiramente se desse...

Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...

15-12-1932

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 293.

6 de fev. de 2023

Donas de casa:: Anne Sexton (1928 -1974, EUA)


Karin Dawn Kelshall

Algumas mulheres casam-se com casas. 

É outro tipo de pele, tem um coração, 

uma boca, um fígado e movimento de entranhas. 

As paredes são permanentes e cor-de-rosa. 

Vejam como ela está ajoelhada o dia todo, 

lavando-se fielmente de alto a baixo 

Os homens entram à força, atraídos como Jonas 

para as suas mães carnudas. 

Uma mulher é a sua própria mãe 

e isso é o mais importante. 


 LIVE OR DIE (1966)

9 de jan. de 2023

Retrato de mulher :: Wislawa Zymborska

Karol Kroll


Deve ser para todos os gostos.

Mudar só para que nada mude.

É fácil, impossível, difícil, vale tentar.

Seus olhos são, se preciso, ora azuis, ora cinzentos,

negros, alegres, rasos d’água sem nenhuma razão.

Dorme com ele como a primeira que aparece, a única no mundo.

Dá-lhe quatro filhos, nenhum filho, um.

Ingênua, mas a que melhor aconselha.

Fraca, mas aguenta.

Não tem cabeça, pois vai tê-la.

Lê Jaspers e revistas de mulher.

Não entende de parafusos mas constrói uma ponte.

Jovem, como sempre jovem, ainda jovem.

Segura nas mãos um pardalzinho de asa partida

seu próprio dinheiro para uma viagem longa e longínqua

um cutelo para carne, uma compressa, um cálice de vodca.

Corre para onde, não está cansada.

Claro que não, só um pouco, muito, não importa.

Ou ela o ama ou é teimosa.

Para o bem, para o mal e para o que der e vier.

28 de dez. de 2022

O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial :: Mia Couto

Lhe concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas, eu, velho e sozinho, o que posso fazer? Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que freqüento o hospital, vezes e vezes, a exibir minhas maleitas. Só nesses momentos, doutor, eu sou atendido. Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infinita fila de espera, me vem a ilusão de me vizinhar do mundo. Os doentes são minha família, o hospital é o meu tecto e o senhor é o meu pai, pai de todos meus pais.


Desta feita, porém, é diferente. Pois eu, de nome posto de Sexta-Feira, me apresento hoje com séria e verídica queixa. Venho para aqui todo desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. Aconteceu quando assistia jogo do Mundial de Futebol. Desde há um tempo, ando a espreitar na montra** do Dubai Shoping, ali na esquina da Avenida Direita. É uma loja de tevês, deixam aquilo ligado na montra para os pagantes contraírem ganas de comprar. Sento-me no passeio, tenho meu lugar cativo lá. Junto comigo se sentam esses mendigos que todas sextas-feiras invadem a cidade à cata de esmola dos muçulmanos. Lembra? Foi assim que ganhei meu nome de dia da semana. Veja bem: eu, que sempre fui inútil, acabei adquirindo nome de dia útil.


É ali no passeio que assisto futebol, ali alcanço ilusão de ter familiares. O passeio é um corredor da enfermaria. Todos nós, os indigentes ali alinhados, ganhamos um tecto nesse momento. Um tecto que nos cobre neste e noutros continentes.


Só há ali um no entanto, doutor. É que sou atacado de um sentimento muito ulceroso enquanto os meus olhos apanham boleia para a Coreia do Sul. O que me inveja não são esses jovens, esses fintabolistas, todos cheios de vigor. O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já tinha marcado contra o destino?


Eu sei, doutor, lhe estou roubando o tempo. Vou directo no assunto do meu ombro. Pois aconteceu o seguinte: o dono da loja deu ontem ordem para limpar o passeio. Não queria ali mendigos e vadios. Que aquilo afastava a clientela e ele não estava para gastar ecrã em olho de pobre. Recusei sair, doutor. O passeio é pertença de um alguém? Para me retirarem dali foi preciso chamar as forças policiais. Vieram e me bateram, já eu estendido no chão e eles me ponteavam, com raiva como se não me batessem em mim, mas na sua própria pobreza. Proclamei que hoje voltaria mais outra vez, para assistir ao jogo. É que jogam os africanos e eles estão a contar comigo lá na assistência. Não passam sem Sexta-Feira. O dono da loja me ameaçou que, caso eu insistisse, então é que seria um festival de porrada. O que eu lhe peço, doutor, é que intervenha por mim, por nós os espectadores do passeio da Avenida Direita. O proprietário do Dubai Shoping não vai dizer não, se for um pedido vindo de si, doutor.


Pois eu, conforme se vê, vim ao hospital não por artimanha, mas por desgraça real. O doutor me olha, desconfiado, enquanto me vai espreitando os traumatombos. Contrariado, ele lá me coloca sob o olho de uma máquina radiográfica. Até me atrapalho com tanta deferência. Até hoje, só a polícia me fotografou. Se eu soubesse até me tinha preparado, doutor, escovado a dentuça e penteado a piolheira.


Quando me mostram a chapa, porém, me assalta a vergonha de revelar as minhas pobres e desprevenidas intimidades ósseas. Quase eu grito: esconda isso, doutor, não me exiba assim às vistas públicas. Até porque me passa pela cabeça um desconfio: aqueles interiores não eram os meus. E o doutor não fique espinhado! Mas aquilo não são ossos: são ossadas. Eu não posso estar assim tão cheio de esqueleto. Aquela fotografia é de chamar saliva a hienas. Sem ofensa, doutor, mas eu peço que se deite fogo nessa película. E me deixe assim, nem vale a pena enrolar-me as ligaduras, aplicar-me as pomadas. Porque eu já vou indo, com as pressas. Não esqueça, por favor. Foi por esse pedido que eu vim. Não foi pelo ferimento.


E logo me desando, já as ruas deságuam. Chego à loja dos televisores e me sento entre a mendigagem. Veja bem: tinham- me guardado o lugar em meu respeito. Isso me comove. Afinal, o doutor sempre telefonou, sempre se lembrou do meu pobre pedido. Ainda há gente neste mundo! Meus olhos brilham olhando não o jogo, mas as pessoas que olhavam a montra. Quem disse que a televisão não fabrica as actuais magias?


O que eu vi num adocicar de visão foi isto, sem mais nem menos: eu e os mendigos de sexta-feira estamos no mundial, formamos equipa com fardamento brilhoso. E o doutor é o treinador. E jogamos, neste momento preciso. Eu sou o extremo esquerdo e vou dominando o esférico, que é um modo de dominar o mundo. Por trás, os aplausos da multidão. De repente, sofro carga do defesa contrário. Jogo perigoso, reclamam as vozes aos milhares. Sim, um cartão amarelo, brada o doutor. Porém, o defesa continua a agressão, cresce o protesto da multidão. Isso, senhor árbitro, cartão vermelho! Boa decisão! Haja no jogo a justiça que nos falta na Vida.


Afinal, o vermelho é do cartão ou será do próprio sangue? Não há dúvida: necessito assistência, lesionado sem fingimento. Suspendessem o jogo, expulsassem o agressor das quatro linhas. Surpresa minha – o próprio árbitro é quem me passa a agredir. Nesse momento, me assalta a sensação de um despertar como se eu saísse da televisão para o passeio. Ainda vejo a matraca do polícia descendo sobre a minha cabeça. Então, as luzes do estádio se apagam.


* Neste conto optou-se por manter a grafia do português de Moçambique.

** Montra: substantivo feminino, mostruário de casa comercial, vitrina, mostrador. Regionalismo: Portugal.

20 de dez. de 2022

"Bonne pensée du matin" "Bom augúrio matutino": Arthur Rimbaud (tradução de Ivo Barroso)

Verão, às quatro da madrugada
O sono do amor ainda demora.
Sob os bosques dispersa a aurora
            O odor da noite festejada.

Mas lá, em seus imensos canteiros
De obras, em mangas de camisa,
Ao sol das Hespérides, já se agitam
            Os carpinteiros.

Em seus desertos de serragem,
Caros lambris preparam, lentos,
Em que a riqueza da cidade
          Verá falsos firmamentos.

Ah! por esses belos Fabricantes,
Súditos de um rei da Babilônia,
Vênus! deixa um pouco os Amantes
          Com as almas em coroa.

          Rainha dos Pastores!
   Dai-lhes o trago deste dia,
   Para que em paz recobrem forças
À espera do banho de mar, ao meio-dia.



....

Bonne pensée du matin

À quatre heures du matin, l'été,
Le sommeil d'amour dure encore.
Sous les bosquets, l'aube évapore
          L'odeur du soir fêté.

Mais là-bas dans l'immense chantier
Vers le soleil des Hespérides,
En bras de chemise, les charpentiers
          Déjà s'agitent.

Dans leur désert de mousse, tranquilles,
Ils préparent les lambris précieux
Où la richesse de la ville
          Rira sous de faux cieux.

Ah ! pour ces Ouvriers charmants
Sujets d'un roi de Babylone,
Vénus ! laisse un peu les Amants
          Dont l'âme est en couronne

          Ô Reine des Bergers !
  Porte aux travailleurs l'eau-de-vie.
  Pour que leurs forces soient en paix
En attendant le bain dans la mer, à midi.

RIMBAUD, Arthur. "Bonne pensée du matin" / "Bom augúrio matutino". In:_____. Poesia completa. Edição bilingue. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. 

18 de dez. de 2022

Poente :: Liria Porto

não é noite ainda

nem dia

nesta hora aflita

ninguém interdita

o ocaso


fica mais um pouco

espera a estrela 

ela não demora 

hoje é domingo 

ou segunda-feira?


(não importa o tempo 

não importa a mágoa

esse limiar

é e sempre foi

a gota d'água)


a vida se esvai

esgota-nos apouca-se

salve-se o amor

alvo dos chacais

cria indefesa


*líria porto

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...