20 de fev. de 2013

Antibiografia de Maria Rita Kehl



Não, Antonio Prata, não é questão de arrependimento pelo que não fiz. As experiências perdidas constituem uma rede de lembranças legítimas. Pode até ser que o vivido mesmo, pão pão, queijo queijo, ocupe uma parte bem reduzida de nossas memórias. Penso que existe um acervo de saudades lotado de imagens do que se viveu só através de relatos alheios, da literatura e da imaginação. É possível ter saudades, por exemplo, da infância da sua avó, se ela te contou episódios com graça, imaginação e alguma nostalgia. Algumas cenas contadas por ela passam a te pertencer também.
As saudades do que eu queria ter feito e não fiz se constroem de trás pra frente. É depois, só depois, que você se dá conta de que prestou atenção ao que acontecia à sua direita e não percebeu algo muito mais interessante que se passava à esquerda. Ou vice-versa. Claro, existem também as escolhas. Nesse caso, penso que se eu quisesse mesmo, mesmo, fazer x em vez de y, teria feito. Essa coleção de vacilos escreve uma história. No horizonte virtual das possibilidades que foram deixadas pra trás deve haver um duplo meu, vivendo a vida que foi dos outros.
Não morei fora do Brasil, como tantos companheiros de geração. Nem com bolsa de estudos, nem lavando pratos on the road. Ficou na memória o aceno de Paris no postal mandado pela amiga que saiu da nossa moradia comunitária para estudar lá. Por alguma razão sentimental, achava interessantíssima a vida que tinha aqui, apesar do sufoco militar. Também não estive presa. Não lamento, é óbvio, mas tiro o chapéu para os que levaram a luta a tal extremo. Minha modesta militância contra a ditadura não foi considerada perigosa. Mas para mim, foi formadora: um terço, digamos, do que aprendi de importante nesta vida devo ao convívio com os colegas jornalistas e editores dos tabloides em que trabalhei.
Não fui mochileira exemplar, apesar de ter feito a peregrinação obrigatória pelas praias (em média, decepcionantes) do Nordeste. Mas não me encorajei a conhecer Machu Picchu, por exemplo, no tempo em que era obrigatória a viagem no teto do trem da morte lotado, com direito a dor de barriga por beber água de torneira.
Tinha uma vaga noção da importância do que acontecia muito perto de mim. O acaso decidiu o que vi e o que não vi, o que aproveitei e o que perdi. Não vi o show Opinião, de meu amigo 30 anos mais tarde Augusto Boal. Será que não? Então por que não me esqueço de Carcará, cantado por Maria Bethânia, desafiadora, com seu corpo de menino? Nem de Zé Keti - "podem me prender, podem me bater..."? E se também perdi Arena Conta Zumbi, como posso contar, digo, cantar, até hoje, o espetáculo quase todo? Quase me esqueço de que passei várias férias no Rio sem saber que existia o Zicartola. Esse não existe mais nem pra remédio. Mas sei tudo de Cartola, de cor. Perdi Pobre Menina Rica do Vinícius de Morais, e ouvi o disco até gastar. De Morte e Vida Severina, unanimidade nos anos 60, decorei todos os trechos do poema musicados pelo Chico Buarque.
Não recebi o impacto dos primeiros filmes de Glauber Rocha, nem do Godard dos anos 60. Mas não me entrego não - em matéria de filmes e livros, tudo se recupera. Viva os livros e filmes que não li nem vi. Por conta deles estou salva do tédio, até morrer.
A lista das coisas perdidas não tem fim. Só as canções eu não deixei passar. As canções me salvaram de ficar fora do mundo. Estavam todas no ar, trazidas pelo vento diretamente para minha memória musical. Respirei as canções, sonhei canções, entendi o Brasil desde o primeiro samba, porque existem as canções. Vivi sempre a condição dessa cidadania dupla, uma vida no chão, outra no plano das canções que recobrem o mundo ou, pelo menos, o país em que nasci. As canções ampliaram o meu tempo, transcenderam o presente e, numa gambiarra genial, juntaram um monte de pontas soltas desde antes de eu nascer até.
As canções: já que não virei cantora - opa: eis aí um arrependimento sincero! -, espero quem sabe um dia escrever alguma coisa à altura delas.
fonte: 20 de fevereiro de 2010 Jornal O Estado de S.Paulo

18 de fev. de 2013

Só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui. de Clarice Lispector

Catrin Welz-Stein

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui.

in A Hora da estrela

17 de fev. de 2013

Espiral - Fernando Pessoa




Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade directa; os campos, as cidades, as ideias, sao coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não «Tenho vontade de chorar», que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto: «Tenho vontade de lágrimas». E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afectada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere absolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida. «Tenho vontade de lágrimas»! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral.

fonte: LIVRO DO DESASSOSSEGO. Fragmento 117


16 de fev. de 2013

Semáforos, farmácias, máscaras ou três cenas paulistanas - Sérgio Telles

Sebastião Salgado

Ao parar no semáforo, o carro é imediatamente cercado por um bando de crianças, adolescentes, jovens adultos.
Alguns correm entre os veículos, colocando nos retrovisores pequenos sacos plásticos com balas, bombons ou flanelinhas, acrescidos de um pequeno escrito onde está afirmado que aquilo não é um assalto e sim um trabalho honesto, pelo qual é pedida uma remuneração. Outros, com água e rodos, ameaçadoramente se oferecem para limpar o para-brisa. Os menores não se dão ao trabalho de oferecer serviços supérfluos e não solicitados, vão diretamente ao que interessa e pedem dinheiro, querem moedas e trocados. Uns poucos ainda fazem malabarismos com fogo, a maioria exibindo um sofrível desempenho nesse desempenho.
Vagamente atemorizado, o motorista tenta manter a calma. Pra um diz que não precisa limpar o vidro. Pra outro diz que não tem moedas, está sem trocado. Não, também não quer comprar flanelinha nem balas de hortelã ou de qualquer outro sabor. Pros malabaristas mais esforçados, eventualmente faz um elogio. Procura sorrir para uma das criancinhas de cara suja e cabelo emaranhado.
O medo diminuiu e foi substituído por um estado de preocupação. Olha para as crianças, pros adolescentes, pros jovens adultos, pensando que todos eles deveriam estar em outro lugar, em casa com os pais, na escola, no trabalho.
Sabe o motorista que todos aqueles meninos, rapazes e moças vivem um presente negro, sem poder alimentar nenhuma esperança de um futuro melhor. Estão batalhando a sobrevivência em meio à fria indiferença dos homens, num áspero aprendizado que certamente terá efeitos desastrosos para todos. Sabe que apenas um fio os separa da franca marginalidade.
O motorista é invadido pelo desânimo e aumenta o volume do rádio do carro. A música o distrai até o próximo grande cruzamento, quando tudo recomeça.
fonte: O Estado de S.Paulo - C2 + Música 17/03/12

15 de fev. de 2013

Face sonhada de João Cabral de Melo Neto

Felix Mas

Eu penso o poema 
da face sonhada, 
metade de flor 
metade apagada. 
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada 
o vazio se cala.

14 de fev. de 2013

Amando uma mulher inteligente de Luiz Felipe Pondé


(...) hoje vou falar de coisa mais séria; vou falar de amor romântico e de um filme maravilhoso para quem gosta do tema e também de filosofia: "O Amante da Rainha, filme dinamarquês dirigido por Nikolaj Arcel, com Mads Mikkelsen (o amante) e Alicia Vikander (a rainha) no elenco.
Você acredita no amor romântico? Dito assim parece uma pergunta idiota. Alguns dirão que pessoas maduras sabem que o amor não existe. Outros, que é diferente de paixão, sendo esta passageira, enquanto o amor seria algo mais sólido, dado a parcerias de longa duração.
Nada mais pernicioso para um casamento de longa duração do que a expectativa de amor romântico depois de um certo número de anos, diriam os "maduros". Expectativas assim seriam "coisa de mulher", o que também é uma besteira. Homens sonham com momentos de paixão com suas mulheres no dia a dia. "Ter uma mulher" significa exatamente isso.
Supor que os homens são animais de cerveja, futebol e sexo é não entender nada sobre os homens. Pensar que os homens só pensam em cerveja, futebol e sexo é a mesma coisa que pensar que mulher é um ser menos inteligente.
A suposta simplicidade masculina é tão falsa quanto a também suposta irracionalidade feminina.
O tema encanta, apesar de alguns teóricos afirmarem que o amor é uma mera invenção da literatura europeia medieval (como o Papai Noel), universalizada, de modo equivocado, pelos autores românticos dos séculos 19 e 20.
Digo "equivocada" porque, para os medievais, nem todo mundo seria capaz de viver ou suportar tal forma de amor avassalador. Já para os românticos, modernos, todo mundo poderia viver essa forma de encantadora doença da alma.
Eu não acredito que o amor romântico seja uma invenção da literatura, mas concordo com os medievais: muita gente passa pela vida sem experimentá-lo. Uma pena, pobres miseráveis...
A narrativa medieval descreve essa "maladie de la pensée" (doença do pensamento, do espírito), dito no original provençal (um tipo de francês comum na Idade Média), como um modo de obsessão que arrasta o homem e a mulher, fazendo com que fiquem presos no desejo de estar um com o outro e atormentados quando não podem se encontrar, quando não podem se tocar.
Segundo os medievais, ele ficará horas imaginando o que ela estaria fazendo, pensando, sonhando, com o desejo de penetrar em todos os segredos de sua alma e de seu corpo ("Tratado do Amor Cortês", de André Capelão, publicado pela editora Martins Fontes).
A estrutura ideal supõe o amor impossível, no qual a morte espera os dois ou um dos dois --e a desgraça do que sobrevive. Quando o amante é amigo fiel do marido dela, a estrutura dramática encontra seu modo mais perfeito de impasse.
Dirão os especialistas que o amor romântico cantado nos séculos 18 e 19 fala da destruição de qualquer forma de vida que não a interesseira, típica da burguesia e sua alma de "merceeiro", como diria Marx.
"O Amante da Rainha" tem exatamente essa estrutura. O amante é médico e confidente do rei e se apaixonará enlouquecidamente, e será correspondido, pela rainha.
Esse médico, chamado de "o alemão" pelos dinamarqueses (o personagem é alemão), é um iluminista (leitor de Rousseau e Voltaire) que crê na superação da barbárie pelo uso da razão e da ciência. Ela também.
O amor dos heróis não é apenas construído a partir de "sentimentos" mas, também, do encontro entre suas almas inquietas com o mundo a sua volta. Ambos são filósofos de uma época em que a filosofia se revoltou com a estupidez do mundo (o filme se passa na segunda metade do século 18). Aliás, a filosofia sempre se revoltará, porque o mundo será sempre estúpido.
Além de belas pernas e belos seios, a delícia de partilhar inquietações filosóficas com uma mulher que amamos pode ser uma das maiores formas de amor romântico que existe. Infeliz aquele que não sabe disso.

O verde absoluto é a cor mais calma que existe.









“O verde absoluto é a cor mais calma que existe. Não é o centro de nenhum movimento. Não se acompanha nem de alegria, nem de tristeza, nem de paixão. Não solicita nada, não lança nenhum apelo. Esta imobilidade é uma qualidade preciosa, e sua ação é benfazeja sobre os homens e sobre as almas que aspiram ao repouso. A passividade é o caráter dominante do verde absoluto, mas esta passividade se perfuma de unção, de contentamento de si mesmo”.
fonte: KANDINSKI,  Wassily. Curso da Bauhaus.  Editora Martins Fontes, 1996. p. 156

As patas do pátio de Fabrício Carpinejar


Todas as xícaras de minha avó, porcelana francesa, apresentavam a asa quebrada. Dava uma pena ver as peças trincadas. Perguntei para vó quem fez aquele estrago, louco para condenar um parente e conquistar a intimidade da tristeza. A vó riu sozinha: "fui eu!". Pegou uma chave pequeníssima, presa em seu colar, e abriu a gaveta a mostrar uma pilha de asas de xícaras. "Assim as xícaras nunca serão roubadas".

Andy Warhol


12 de fev. de 2013

Crepom cor-de-rosa de Clarice Lispector


Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

11 de fev. de 2013

Chovendo na Roseira de Tom Jobim



Olha está chovendo na roseira
Que só dá rosa mas não cheira
A frescura das gotas úmidas
Que é de Luisa
Que é de Paulinho
Que é de João
Que é de ninguém

Pétalas de rosa carregadas pelo vento
Um amor tão puro carregou meu pensamento

Olha um tico-tico mora ao lado
E passeando no molhado
Adivinhou a primavera

Olha que chuva boa prazenteira
Que vem molhar minha roseira
Chuva boa criadeira
Que molha a terra
Que enche o rio
Que limpa o céu
Que traz o azul

Olha o jasmineiro está florido
E o riachinho de água esperta
Se lança em vasto rio de águas calmas

Ah, você é de ninguém
Ah, você é de ninguém

10 de fev. de 2013

Aviamento de Livia Garcia Roza

Aviam-se desejos. Tratar aqui.


Rosas, rosinhas.








Matizes: o fio da meada, o avesso e o círculo do bastidor






















Aprendemos a bordar com uma mãe bordadeira clássica, que fazia suas artes entre os afazeres domésticos, seguindo modelos de panos de amostra, com pontos já definidos, como tantas bordadeiras. Com ela aprendemos a descobrir as luzes, os movimentos, as formas, as cores e matizes da natureza, o que nos permitiu ter um outro olhar sobre a arte de bordar e conferir atualidade à arte milenar praticada anonimamente pelas mulheres em sua vida diária, costumeira.
Dessa aprendizagem cotidiana e antiga, passamos a fazer caminho outro, singular, escolhendo o movimento e a liberdade para criar. Adotamos um pressuposto para nortear nosso bordar: o risco é um caminho a ariscar, a escolher ou refazer. O círculo do bastidor passa a limitar a criação, e o dedal nos tira os movimentos, o avesso transforma-se em novas possibilidades.
Escolhemos então um fazer liberto de amarras e pontos marcados e limitadores. São significações nossas, mas se outras bordadeiras escolhem outros matizes e agulhas, são sentidos e significados de alteridade ao criar.
A vida vivida é o fio da meada que ao longo de tantos anos nos liga e nos possibilita criar, fazer com as mãos, com a emoção e com a alma a nossa arte. Fizemos uma opção de arte que tem como eixo a linha da imaginação solta – “que nosso imaginário nos guie é o que falamos para nós mesmas cada vez que iniciamos um projeto.”

fonte: http://www.matizesbordadosdumont.com/portu/familia.asp

9 de fev. de 2013

Mário de Sá-Carneiro, Último Soneto


Iris de Van Gogh 

Pensei que fosse o meu o teu cansaço -
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...
E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

Mário de Sá-Carneiro, Último Soneto, in Indícios de Oiro (1937)

8 de fev. de 2013

Entendimento de Fernando Sabino




Sentaram-se no banco e se calaram, tentando entender o silêncio. 
As palavras tinham um sentido além delas mesmas. 
O silêncio seria, sempre, o único meio de entendimento perfeito.

Fernando Sabino in: 0 Encontro Marcado

Casaco Marrom de Danilo Caymmi, Renato Corrêa, Guttemberg Guarabyra



Eu vou voltar aos velhos tempos de mim
Vestir de novo o meu casaco marrom
Tomar a mão da alegria e sair
Bye bye, Cecy "nous allons"
Copacabana está dizendo que sim
Botou a brisa à minha disposição
A bomba "H" quer explodir no jardim
Matar a flor em botão
Eu digo que não
Olhando a menina
De meia estação
Alô coração,
Alô coração, alô coração
Eu vou voltar aos velhos tempos de mim
Vestir de novo o meu casaco marrom

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...