Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
24 de mai. de 2018
22 de mai. de 2018
14 de mai. de 2018
Vozes e Fios :: Ana Maria Machado (Santa Tereza, Rio de Janeiro, a 24 de dezembro de 1941)
Era uma vez uma voz.
Um fiozinho à toa. Fiapo de voz.
Voz de mulher. Doce e mansa.
De rezar, ninar criança,
muitas histórias contar.
De palavras de carinho
e frases de consolar.
Por toda e qualquer andança,
voz de sempre concordar.
Voz fraca e pequenina.
Voz de quem vive em surdina.
Um fiapo de voz que tinha todo o jeito de não ser ouvido....
Ponto a Ponto. Companhia das Letrinhas.
13 de mai. de 2018
Quando menino :: Vladimir Maiakovski
Eu fui feito sob medida para o amor.
É que as pessoas
são trituradas pelo trabalho
desde a infância.
Já eu –
fugia para as margens do Rioni
nem o diabo sabe por que atalho
e ficava na andança.
Mamãe se irritava:
« menino mal-criado! ».
A cinta de papai zunia.
Mas eu
mais rápido prestidigitava
com três rublos falsos
jogando « montes de três »
com os fardados da infantaria.
E eis,
sem o peso das botas
nem o fardo das camisas,
eu a bronzear-me à beira rio.
Virava para o sol estas costas
e esta barriga –
de estômago vazio.
O sol se maravilhava:
« Onde já se viu?
Pudera, com um coração desse tamanho!
Quase que desaba.
Incrível que caiba
em tão pequena criatura
eu,
o cinturão do rio
e mais três verstas de montanhas!
É que as pessoas
são trituradas pelo trabalho
desde a infância.
Já eu –
fugia para as margens do Rioni
nem o diabo sabe por que atalho
e ficava na andança.
Mamãe se irritava:
« menino mal-criado! ».
A cinta de papai zunia.
Mas eu
mais rápido prestidigitava
com três rublos falsos
jogando « montes de três »
com os fardados da infantaria.
E eis,
sem o peso das botas
nem o fardo das camisas,
eu a bronzear-me à beira rio.
Virava para o sol estas costas
e esta barriga –
de estômago vazio.
O sol se maravilhava:
« Onde já se viu?
Pudera, com um coração desse tamanho!
Quase que desaba.
Incrível que caiba
em tão pequena criatura
eu,
o cinturão do rio
e mais três verstas de montanhas!
O momento em que sua filha descobre a verdade sobre você :: Gregorio Duvivier
Antes mesmo de ter uma filha já morria de medo disso: algum dia ela vai perceber que eu não sei de nada. Sim, porque é pra isso, em grande parte, que se tem filhos, pra que alguém no mundo acredite, nem que seja por alguns anos, que você sabe alguma coisa. E é por isso, também, que se odeia tanto os adolescentes: não é porque eles acham que os pais são idiotas, mas porque eles perceberam que os pais são idiotas. No caso da minha filha, a queda do mito paterno aconteceu um pouco mais cedo do que eu imaginava, mais precisamente aos três dias de vida.
Minha filha não chorou quando nasceu. Só choramos nós, os pais, emocionados de ter uma filha que não chora. Nasceu sorrindo, vê se pode, dizíamos nós, chorando. Depois chorei outra vez quando ela mamou na mãe, e chorei de novo quando vi os avós vendo a neta, e sendo avós pela primeira vez. Acho que foi ali que ela começou a suspeitar: quem é esse cara chorando o tempo todo? Barbudo, trinta anos na cara, chorando desse jeito? Será que ele tem algum problema?
A epifania aconteceu mesmo quando a gente chegou em casa e, pela primeira vez, ela chorou. E a partir daí não parava de chorar. Mamava e chorava e mamava. No meio da madrugada, quando a mãe dela dormia um sono merecido, peguei minha filha no colo e fomos pra sala. Achei que fosse resolver no mano a mano.
Foi ali, só nós dois, no lusco-fusco, que ela percebeu tudo. Aos três dias de vida, vi no fundo dos seus olhos que ela tinha descoberto que o seu pai não fazia a menor ideia do que tava fazendo. E foi ali que ela começou a chorar de verdade.
Desculpa, cheguei a dizer, desculpa ter feito você nascer de um pai que não sabe de nada, tanta gente escolada por aí e você veio parar logo na casa desse marinheiro de primeira viagem, esse sujeito que tá chorando mais que você, desculpa, filha, desculpa. E ela chorou mais ainda ao ver sua suspeita confirmada.
Desde então assisti milhões de vídeos no YouTube sobre como fazer um bebê parar de chorar. Vira pro lado, shh, shh, oferece o mindinho, shh, shh, balança, suinga, shh, shh, faz charutinho, shh, shh. Passou, passou, passou. Até agora não encontrei nenhum vídeo sobre como fazer um pai parar de chorar. Filha, vou precisar de você. Seu pai também, coitado, acabou de nascer. Tá perdidinho. Me ensina a parar de chorar que nisso você já tá melhor que eu.
Minha filha não chorou quando nasceu. Só choramos nós, os pais, emocionados de ter uma filha que não chora. Nasceu sorrindo, vê se pode, dizíamos nós, chorando. Depois chorei outra vez quando ela mamou na mãe, e chorei de novo quando vi os avós vendo a neta, e sendo avós pela primeira vez. Acho que foi ali que ela começou a suspeitar: quem é esse cara chorando o tempo todo? Barbudo, trinta anos na cara, chorando desse jeito? Será que ele tem algum problema?
A epifania aconteceu mesmo quando a gente chegou em casa e, pela primeira vez, ela chorou. E a partir daí não parava de chorar. Mamava e chorava e mamava. No meio da madrugada, quando a mãe dela dormia um sono merecido, peguei minha filha no colo e fomos pra sala. Achei que fosse resolver no mano a mano.
Foi ali, só nós dois, no lusco-fusco, que ela percebeu tudo. Aos três dias de vida, vi no fundo dos seus olhos que ela tinha descoberto que o seu pai não fazia a menor ideia do que tava fazendo. E foi ali que ela começou a chorar de verdade.
Desculpa, cheguei a dizer, desculpa ter feito você nascer de um pai que não sabe de nada, tanta gente escolada por aí e você veio parar logo na casa desse marinheiro de primeira viagem, esse sujeito que tá chorando mais que você, desculpa, filha, desculpa. E ela chorou mais ainda ao ver sua suspeita confirmada.
Desde então assisti milhões de vídeos no YouTube sobre como fazer um bebê parar de chorar. Vira pro lado, shh, shh, oferece o mindinho, shh, shh, balança, suinga, shh, shh, faz charutinho, shh, shh. Passou, passou, passou. Até agora não encontrei nenhum vídeo sobre como fazer um pai parar de chorar. Filha, vou precisar de você. Seu pai também, coitado, acabou de nascer. Tá perdidinho. Me ensina a parar de chorar que nisso você já tá melhor que eu.
12 de mai. de 2018
Sonho materno de Fabrício Carpinejar
O sonho de toda mãe mais velha é segurar a mão de seu filho adulto na rua. Que seu rebento partilhe um pouco de sua pele durante cem metros.
Casado, separado, divorciado, tanto faz o estado civil, se está com cavanhaque ou penacho, se é emo ou cowboy, ela tenta reaver os preciosos momentos da infância em que o buscava na escola e não havia vergonha para entrelaçar as palmas em público.
A adolescência criou uma barreira invisível e intransponível que não permite se aproximar do filho com naturalidade. Não é fácil puxar seus cotovelos para perto. Abraço acontece em data comemorativa, e mão é somente em caso de doença.
Desde que ele arrumou mulheres e passou a voltar tarde, ele não dá mais a mão fora de casa. É um tabu, um medo de ser contagiado pela emoção, um atentado ao pudor.
Seu menino crescido pede distância nas caminhadas. No máximo, oferece a argola dos braços, como se fosse uma muleta amparando a lentidão dos passos.
O mais alto desejo é receber os dedos do filho como um anel de brilhante, que os vizinhos reconheçam os cuidados de uma vida dedicada à maternidade, que ela sirva de exemplo às próximas gerações, provoque ciúme nas escadarias das igrejas. É uma recompensa social, é retirar finalmente o Fundo de Garantia doméstico.
E não vale em faixa de segurança, onde a mãe se sentirá inválida; a aspiração depende do espaço largo das calçadas e da curiosidade indiscreta dos passantes.
Toda mãe madura tem esse sonho, que é o pesadelo do filho.
Já observei a mãe Maria Elisa de 70 anos me enganchar com suas unhas pintadas de rosa antigo. São três décadas insistindo, teimando, chega a irritar sua obsessão, que mania!, ela sabe que não gosto. Aproveita alguma distração, um riso à toa e espicha o braço. Talvez cogite que é o momento, que finalmente me abrirei de novo ao convívio. Eu recuso, fecho metade do punho, digo que esqueci o celular em casa e preciso voltar. Simulo desinteresse e que não prestei atenção. Entre eu e ela, fingimos que nunca existiu a atitude, apesar de sempre existir.
Andar de mãos dadas com ela é aceitar a pecha de filhinho da mamãe, é acolher o estigma eternamente. Não serei levado a sério. O que minha namorada vai pensar?
Não posso arriscar, é o equivalente a trocar a gravata pelo babador. Perderei a reputação no banco e o respeito das lotéricas. Alguns dirão que sofro de Complexo de Édipo, outros a chamarão de sem-vergonha abusando de jovenzinhos.
Acho que conseguiria adiar a crise diplomática para mais alguns anos, mas o maldito irmão Miguel quebrou o protocolo. Traiu a família, o acordo silencioso, o inventário dos gestos.
Além de levá-la ao cinema, percorreu o shopping inteiro apertando sua mão, inclusive na frente das lojas do Grêmio e do Inter. Eu me tornei insensível, extraviei sua herança, com nenhuma chance de retomar a posição de dileto. Vou procurar o perdão beijando meu pai no calçadão da Rua da Praia.
fonte: 12.07.2010 Jornal ZERO HORA
11 de mai. de 2018
9 de mai. de 2018
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