28 de fev. de 2022

Metade :: CALCANHOTO, Adriana.

Eu perco o chão

Eu não acho as palavras

Eu ando tão triste 

Eu ando pela sala

Eu perco a hora, 

Eu chego no fim

Eu deixo a porta aberta

Eu não moro mais em mim


             Eu perco as chaves de casa

Eu perco o freio

Estou em milhares de cacos, 

Eu estou ao meio

Onde será que você está 

Agora?


 In: REIS-SÁ, Jorge (org.). Creio que foi o sorriso . Uma antologia. A Casa dos Ceifeiros, 2020.

21 de fev. de 2022

A feira:: Eduardo Galeano

A ameixa gorda, de puro caldo que te inunda de doçura, deve ser comida, como você me ensinou, com os olhos fechados. A ameixa vermelhona, de polpa apertada e vermelha, deve ser comida sendo olhada. 

Você gosta de acariciar o pêssego e despi-lo a faca, e prefere que as maçãs venham opacas para que cada um possa fazê-las brilhar com as mãos.

O limão inspira a você respeito, e as laranjas, riso. Não há nada mais ridículo que o abacaxi, com sua couraça de guerreiro medieval.

Os tomates e os pimentões parecem nascidos para se exibirem de pança para o sol nas cestas, sensuais de brilhos e preguiças, mas na realidade os tomates começam a viver sua vida quando se misturam ao orégano, ao sal e ao azeite, e os pimentões não encontram seu destino até que o calor do forno os deixa em carne viva e nossas bocas os mordem com desejo.

As especiarias formam, na feira, um mundo à parte. São minúsculas e poderosas. Não há carne que não se excite e jorre caldos, carne de vaca ou de peixe, de porco ou de cordeiro, quando penetrada pelas especiarias. Nós temos sempre presente que se não fosse pelos temperos não teríamos nascido na América, e nos teria faltado magia na mesa e nos sonhos. Ao fim e ao cabo, foram os temperos que empurraram Cristóvão Colombo e Simbad, o Marujo.

As folhinhas de louro têm uma linda maneira de se quebrarem em sua mão antes de cair suavemente sobre a carne assada ou os ravioles. Você gosta muito do romeiro e da verbena, da noz-moscada, da alfavaca e da canela, mas nunca saberá se é por causa dos aromas, dos sabores ou dos nomes. A salsinha, tempero dos pobres, leva uma vantagem sobre todos os outros: é o único que chega aos pratos verde e vivo e úmido de gotinhas frescas.


 Mulheres

15 de fev. de 2022

Ainda não sei:: Virgínia do Carmo

Ainda não sei como contar-te que cresci

sem mar. Que andei a verter sangue a vida

toda, de coração golpeado pelas cercas vivas

dos meus lugares. Não sei como contar-te 

da minha ânsia de fugir, de correr até à praia

e cegar a memória, de como me atirei

em desespero contra os espinhos, e de como

sangrei, exausta, na sombra dos fracassos.


Agora cheguei ao mar e o sal arde-me


nas feridas. Tenho um chão de areia quente

que me queima os pés, tão gastos de correr.

Cheguei ao mar. Ao espanto comovente 

do mar, e permaneço imóvel. Tão quieta

como as rochas ao longe.

Sou livre e não me movo.

Não sei como se faz isto de viver.



In: Ecos de Green Rose. Poética, 2019, p. 35

7 de fev. de 2022

MANEIRA DE AMAR : Carlos Drummond de Andrade

Camille Engel 

O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza.

Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se contra a luz para não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra, na devida ocasião.

O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo parado diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho.

Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. "Você o tratava mal, agora está arrependido?" "Não, respondeu, estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava".

|Contos plausíveis. J. Olympio, 1981. 



5 de fev. de 2022

Caixa de Ferramentas:: Marcilio Godoi

Um caco de azulejo sobre uma flanela surrada

algumas contas dispersas de um terço desfeito.

E o passado chegando em fiapos.


Um saco de retalhos, uma torneira fosca

entre parafusos. Um anel que vinho no doce.

Miçangas no ar a morrinha do tempo.


Um pé de meia solteira, de onde surgiu

aquele botão florido, um ajuste no paletó do tio.

Última lembrança da louça antes de partir.


Um número descolado da fachada

que poupou tantas visitas

e extraviou todas as cartas.


Uma xícara rachada, guardada bem no desenho da moça.

Uma carcaça de chuveiro, um vazamento na saudade

uma resistência, queimada.


O pai à cabeceira desfiando com a cadeira de palhinha.

Nove lustres de vidro, uma beleza passageira

no dia do eterno despercebido.


Uma renda quase branca, no tom dos ancestrais.

Um café tão doce quanto o dedinho de prosa,

que cantiga era aquela mesmo?


Um santinho colorido do qual esqueci o nome

um bordado no puído, um outro jeito de ter brio.

Mecha de cabelo, lata de engraxar sapato.


A dor nos panos de pranto, o medo às três da manhã.

Ter de lidar com o tanto de saudade da irmã

e o incômodo das rimas acidentais.


Um cabo de panela solto, um mimo, um agnus-dei

uma piada esquecida, frouxa, uma rua que me lembra

o que na ferrugem dela vai comigo.

 

Um vidro de graxa, uma polia desencaixada

para sempre de qualquer expectativa.

A chave certa, sem fechadura.


O botão da cortina encomendada pro casório, uma aspirina

diária pra modo de não enfartar, um palavrório

providencial, dissolvido na dúvida.


Uma costela de adão num vaso equilibrado

sobre uma lata de goiabada. Um nó de pinho de riga

no chão, um taco tirado do peito.


Uma concha achada incrível, no mar de Guarapari

um susto horizontal, a promessa de voltar

qualquer hora à Mantiqueira.


Um prego no colchão me levanta e deitam molas

brocas de cisma, pigarro na garganta.

24 de jan. de 2022

O pombo flâneur :: Alex Varella

Todo pombo é flâneur, mas o carioca ainda mais.

Conta Paulo Mendes Campos que era verão,

e dois deles tinham marcado um encontro,

às cinco azul em ponto,

nos céus do Rio de Janeiro.

Os tradicionais relógios da Mesbla e da Central marcavam a hora,

mas não marcavam o tempo,

(nenhum relógio marca o tempo).

Atravessando a cidade num fio de luz,

a vista ardendo de azul,

aquele pombo se atrasou

e, arrulhando,

em uma sentença se explicou:

“-- Desculpe , meu amor,

mas o dia estava tão bonito que eu vim andando;

eu tinha de vir andando!”





VARELLA, Alex. O pombo flâneur.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...