No rejunte dos embaciados azulejos da cozinha, um dia o pai bateu, pela altura de seus olhos, dois pregos. Não muito estáveis, espaçados em um palmo, mas firmes o bastante para dependurar, naquela parede quente e fria da casa antiga, uma pequena tabuleta preta, de madeira, rente ao batente, perto da porta da geladeira.
Na plaquinha ia pintada, ao final de uma estradinha, uma casota de onde escapava a fumaça de uma chaminé. Espalhavam-se pela base quatro ganchos em forma de pergunta. Com o tempo, já não sabíamos se a gordura acumulada ali vinha da lareira do desenho ou das frituras do prodigioso fogão branco esmaltado da cozinheira minha mãe.
Eu era um menino desentendido de tudo, mas aquilo era de fácil compreensão. Mesmo de baixo, dava pra ver: tratava-se apenas de um singelo porta-chaves em que se lia, com letra bonita, de professora, o vaticínio tão prosaico quanto alentador: "Tudo passa".
A frase era campeã também nos para-choques dos caminhões que cruzavam as estradas daquele tempo em que tudo passava mesmo. Pensando bem, naquele Brasil de exceção ditatorial, "tudo passa" podia ser lido numa chave subversiva. Afinal, em seu miolo semântico, aparentemente conservador, garantia que nem mesmo uma ditadura viveria para sempre. Só muito depois eu compreenderia isso, pois era um tema difícil pra meninos alheios aos tudo-passavas daquele tempo.
Tempo em que eu e os demais meninos lá de casa não podíamos nem sonhar com o que passava e não passava nos calabouços da repressão política. E os pais cuidavam bem de deixar tudo devidamente bem embaciado no que tratasse daqueles termos.
Engraçado como "tudo passa" atualmente nos parece tão lento. É que hoje tudo corre, tudo voa, tudo zune, tudo ultrapassa. E leva, antes mesmo de acontecer, para o longe do que não veio, o frescor das coisas que nascem e morrem covardemente, sem nenhuma duração. Vivemos um tempo de frações e de meninos bem entendidos, sem impasses, meninos empossados, empoderados, apessoados, apressados. Não de meninos tudopassados como eu era.
Hoje vejo como a gordura que se acumulou no gotejante negrume dos nossos exaustores, por assim dizer, tudo daquela fumaça se nos escorreu. Ou seja, tudo passou mesmo, tragado pela gravidade ou pelo redemoinho do ralo voraz que nos levariam os medos, os brinquedos, os segredos, as fantasias. E depois, aquela tabuleta também, o rejunte, a professora, o fogão, a geladeira, o batente, a casa, tudo, tudo o que passou mesmo, como bem prenunciava aquela doce profecia. Mas onde vão o pai e a mãe?
O pai resiste. Agarra-se na bengala em meio à ventania de sua memória, caminha contra esse vento furioso que assola sua velhice e afrouxa-nos os pregos que ainda nos fixam no mundo. A mãe passou. Mas ainda está aqui, a seu modo. Trouxe-me agora mesmo numa mão o desjejum de pães de queijo imaginários e noutra essa antiga tabuleta porta-chaves de minha infância perdida. É a memória em seu rastilho de pólvora. Ela espera calmamente que eu termine logo de escrever esta crônica desmemoriada e levante a cabeça para outras escrituras.
Minha mãe anda preocupada com minha reticência em aceitar que vida e morte seguem um curso inexorável. Veio mostrar-me a tabuleta outra vez em sonho e dizer-me sem me dizer, dizendo sempre e outra vez, com doçura: tudo passa.
A mãe está serena, mas a minha tristeza, travada em meados de um certo maio, a aflige um pouco, eu posso ver ainda pela fumaça da chaminé de seus prodígios. Percebo que há uma chave num dos ganchos da tabuleta que ela trouxe. Não reconheço bem, talvez seja a da porta de entrada para uma outra porta, talvez a chave de uma porta de saída. Talvez não, é tarde, como saber agora?
Reparando bem, talvez seja a medalha oval dependurada, milagrosa no seu sem tempo. Talvez nem chave alguma não seja, seja apenas a flor da minha idade, teimando prateada em secar ainda em botão, eu, que só sou diferente dessa flor por saber que passarei. Porque tudo passa. Menos a mãe e o pai, que não, que nunca.
Marcilio Godoi. Frágil Recompensa", Editora Sagui, 2018.