Num certo natal, ganhei um livro do pintor Marc Chagall
suas cores de vitral, topázios, ametistas
choveram sobre mim
como nunca houve notícia
e compreendi, afinal,
toda a ternura começara neste artista.
.
Um delírio de cores
formava à minha volta
uma iluminura
escancarei a janela
pra que a noite e seu luar
entrassem por ela
Ah como queria de Chagall uma aquarela!
queria mais, queria que ele me pintasse numa tela
.
Acreditei que bastasse eu desejar muito, muito
e ele viria
e eu pedia, noite e dia, eu pedia
.
E eis que numa noite dessas
muito estrelada
sem alarde nem trombetas
chegaram dois de seus anjos violetas:
-Chagall virá esta noite, disseram, com voz nacarada
-Obrigada, respondi
quase esquecendo a etiqueta.
.
e saí para a noite de diamantes bordada
ele virá flutuante, amante que é de flutuar
descerá pela via láctea
e pousará neste gramado verde-esmeralda
.
escutei murmúrios e adejar de asas
são seus anjos, seus bois bizantinos,
casas, cristos e rabinos
.
a noite era como devia ser: sagrada
uma lua prateada derramava leite de madona lactante
desci as escadas
trazia comigo um turbante,
flores e um peito arfante
.
e eis que o vejo
já dispondo as cores no cavalete
ele não falava, não precisava
.
ajeito-me como maja desnuda
sobre o fino tecido que desliza
.
ele me estuda
.
partes de mim se adelgaçam,
partes de mim se arredondam
tudo está preparado para o evento.
.
e assim Chagall começa seu fino lavor
habilidosamente
e sou, então, transferida para a tela
enfim, definitivamente.
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imagem: Marc Chagall