Por que escolhi a delicadeza como parte essencial da condição humana? Por não ser uma qualidade intrínseca do humano. Isso é justamente o que a faz necessária. A delicadeza não é causa de nossa humanidade, é efeito dela. Não é meio, é finalidade. O homem não é necessariamente delicado – daí a urgência de se preservar, na vida social, as condições para a vigência de alguma delicadeza.
Erramos ao chamar os atos que nos repugnam de desumanos. O homem, não o animal, usa de violência contra seu semelhante. O homem inventou o prazer da crueldade: o animal só mata para sobreviver. O homem destrói o que ama – pessoas, coisas, lugares, lembranças. Se perguntarem a um homem por que razão ele se permitiu abusar de seu semelhante indefeso ele dirá: eu fiz porque nada me impediu de fazer. O abuso da força é um gozo ao qual poucos renunciam. Além disso o homem é capaz de indiferença, essa forma silenciosa e obscena de brutalidade. O homem atropela o que é mais frágil que ele – por pressa, avidez, sofreguidão, rivalidade – sem perceber que com isso atropela também a si mesmo.
O cientista político Renato Lessa (...) utilizou a imagem do naufrágio como metáfora do humano, em nossos tempos. Proponho acrescentar a esta, a metáfora do atropelamento, que expressa perfeitamente a relação do sujeito contemporâneo com o tempo. Não por acaso a palavra já está incorporada ao uso cotidiano da linguagem para expressar os efeitos da pressa sobre a subjetividade. Dizemos, com freqüência, que fomos atropelados pelos acontecimentos – mas quais acontecimentos têm poder de atropelar o sujeito? Aqueles em direção aos quais ele se precipita, com medo de ser deixado para trás. Deixamo-nos atropelar, em nossa sociedade competitiva, porque medimos o valor do tempo pelo dinheiro que ele pode nos render. Nesse ponto remeto o leitor, mais uma vez à palavra exata do professor Antonio Candido:
“O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Isso é uma brutalidade. O tempo é o tecido de nossas vidas”.
A velocidade normal da vida contemporânea não nos permite parar para ver o que atropelamos; torna as coisas passageiras, irrelevantes, supérfluas. Tenho grande ternura pela lembrança de meu pai, nas viagens de carro que fazíamos na minha infância: cada vez que uma mariposa se estatelava contra o para brisas, à noite, ele lamentava o fim abrupto daquela vidinha minúscula, cujo vôo errático era tão desproporcional à velocidade do automóvel. Tudo que vive é sagrado?
Corremos na intenção de não perder nada e perdemos o essencial: o desfrute do próprio caminho. A vida, no entanto, não é exatamente isso – travessia?
fonte: www.mariaritakehl.psc.br
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