Recolhe do ninho os ovos a mulhernem jovem nem velha,em estado de perfeito uso.Não vem do sol indecisoa claridade expandindo-se,é dela que nasce a luzde natureza velada,é seu próprio gostoem ter uma família,amar a aprazível rotina.Ela não sabe que sabe,a rotina perfeita é Deus:as galinhas porão seus ovos,ela porá sua saia,a árvore a seu tempodará suas flores rosadas.A mulher não sabe que reza:que nada mude, Senhor.
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
29 de fev. de 2012
Mural de Adélia Prado
28 de fev. de 2012
Recomendação de Goethe
Ai, que deve o homem esperar?
É melhor ficar inerte?
É melhor viver sem leme?
A algum amor se aferrar?
Deve em tenda residir?
Ou uma casa edificar?
Deve se fiar em rocha,
Tão sujeita a vacilar?
A cada um o seu tanto...
Cada qual rume, com fé,
Pense onde se fixar
E não caia estando em pé.
Investigações de um cão de Franz Kafka
Andrew Wyeth
Todo o conhecimento, a totalidade de todas as perguntas e respostas, está contida no cão.
As minhas interrogações servem apenas de aguilhão para mim mesmo. Só quero ser estimulado pelo silêncio que se ergue à minha volta como resposta derradeira. «Até quando conseguirás suportar o facto de que o mundo dos cães, tal como demonstram cada vez com mais evidência as tuas pesquisas, está para sempre votado ao silêncio? Até quando conseguirás suportar esta ideia?» Esta, esta é que é a verdadeira grande interrogação da minha vida, uma interrogação perante a qual as outras interrogações se tornam totalmente insignificantes. Uma interrogação que diz respeito apenas a nós próprios e a mais ninguém. Infelizmente, posso responder a esta interrogação com mais facilidade do que às interrogações específicas: aguentarei, provavelmente, até ao meu fim natural. A serenidade da velhice irá formando uma resistência cada vez maior a todas as interrogações inquietantes. Tudo indica que hei-de morrer em silêncio e rodeado de silêncio, na verdade até de forma específica, e antevejo isso com uma certa tranquilidade. Um coração admiravelmente resistente, pulmões que é impossível ficarem fracos prematuramente, foram-nos dados a nós, cães, como que por ironia. Assim, sobrevivemos a todas as interrogações, inclusive àquelas que colocamos a nós próprios, como autênticas fortalezas de silêncio que somos.
Franz Kafka, "Investigações de um cão"
27 de fev. de 2012
A senhora Clarinha de Agustina Bessa Luís
Em Fontelas de Cima, repentino sobrado do Alto Douro, ficava a venda da senhora Clarinha. Era uma mulher baixinha, minuciosa nas contas, pouco afeiçoada à clientela, mas mais correcta de maneiras do que éhabitual em patroa de balcão e locanda. A montra, feita duma janela ainda apresentável no seu parapeito verde, exibia maços de velas e lamparinas. A senhora Clarinha servia as necessidades das almas e outras que o não eram. Ela própria tinha a sua devoção pessoal a 5. Judas Tadeu; oferecia-lhe todos os meses um litro de azeite, do melhor, e um quilo de bolachas jazz band. Não que o santo, no seu pequeno soco de escaiola, demonstrasse apetite e gostos adamados. Quem comia as bolachas era o Tito, filho de sacristão e cara de Caim. Era um exemplo paleolitíco com aquela fauce bravia e os olhos juntos. Atirava pedradas aos carros, corria de rastos, tinha esconderijo nas minas e nas pedreiras. Mas sabia o seu latim e tocava a Santos como se quisesse fazer cair as muralhas de Jericó. Enfim, havia prós e contras nesse chambão. No coro, com a opa de cetineta vermelha, estava regular; no adro, parecia ainda humano; na torre do sino, um morcego vampiro ou gárguia de Nôtre Dame. Vamos lá destrinçar as espécies e fazer paleontologia! O caso é outro.
A senhora Clarinha, numa manhã de Maio, recebeu uma carta extraordinária. Era dirigida aos devotos de S. Judas Tadeu e devia ser copiada duzentas vezes e mandada a outros tantos fiéis, a começar pelo nome que lhes era indicado. Porém o nome não constava na carta, e a senhora Clarinha achou-se embaraçada para cumprir aquela intimação; o que a punha em perigo gravíssimo. Interrompida a cadeia, caíam sobre ela desgraças impossíveis de evitar, como incêndios, inundações, mortes de parentes e amigos. Ela estava muitíssimo apoquentada e fechou a loja antes das sete horas. Sentou-se numa cadeirinha de palha e pôs-se a pensar. Tinha algum dinheiro, nome honrado e uma vinha com o seu quarteirão de oliveiras. A casa era dela, com duas salas com um fausto de vistas e uma coroa de bouças velhas em volta. Tinha de tudo na loja — fio de Norte, papos-secos, tesouras da poda. Também vendia grandes rebuçados de avenca, quase do tamanho de pires e embrulhados em papel de seda branco. Desde Fontelas de Cima até Moura Morta, eram famosos. A senhora Clarinha abanou tristemente a cabeça. Não tinha esperança de escapar à terrível ameaça que sobre ela desabara. O Tito, que vinha à noite trazer a canada do leite, encontrou-a meio transtornada e com a carta na mão.
— Lê o que aí diz — pediu ao rapaz. Ele juntou as letras, foi-se explicando.
— Duzentas vezes esta letania! Deite-a fora, não faça caso.
— A carta de S. Judas? Não se pode, é proibido.
Estava tão branca atrás do mostrador verde, que era como uma aparição. Um feixe de ráfia projectava atrás dela uma espécie de auréola loira. O Tito teve medo, e não era um moço acanhado. As ratoeiras a fogo, nos laranjais, já lhe tinham acertado nas pernas duas ou três vezes.
Em poucos dias, a senhora Clarinha morreu do aperto de alma em que estava. Não pôde mandar a ‘carta de S. Judas Tadeu’, e alguma coisa ‘tinha que lhe acontecer’ Deus nos livre do que o destino manda sem nos dar o direito de executar a sua ordem. Ai!
Datado: 10-8-1974
AGUSTINA BESSA LUIS, CONVERSAÇÕES COM DMITRI E OUTRAS FANTASIAS,
Inverso, A REGRA DO JOGO, 1979, p. 35
26 de fev. de 2012
E se escreve de Marguerite Duras
Se chorar é inútil, mesmo assim creio que é preciso chorar.
Pois o desespero é tangível. Perdura.
A lembrança do desespero, isto perdura.
Às vezes mata.
Escrever.
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer: não se pode.
E se escreve.
É o desconhecido que trazemos conosco:
escrever, é isto o que se alcança.
Isto ou nada.
Pode-se falar de uma doença da escrita.
in: Escrever. Rocco, p. 47
25 de fev. de 2012
Beija-flores de John James Audubon
24 de fev. de 2012
Anseios de Florbela Espanca
Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!
Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!
Tu chamas ao meu seio, negra prisão!…
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!
Não ´stendas tuas asas para o longe…
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!…
23 de fev. de 2012
Em algum lugar de E. E. Cummings
Tarsila do Amaral - Vaso com rosas (1919)
nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;
nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas
( tradução: Augusto de Campos )
em algum lugar onde nunca estive, e felizmente aquém
de qualquer experiência, teus olhos guardam seu silêncio:
em teu gesto mais frágil há coisas que me envolvem
ou que não posso tocar porque estão muito próximas
teu olhar mais leve facilmente me descerra
embora eu me tenha fechado como dedos,
e me entreabres sempre, pétala por pétala, como a Primavera
(por toques habilidosos, misteriosamente) ante a primeira rosa
ou se teu desejo é me fechar, eu e
minha vida nos fecharemos formosa e rapidamente
como quando o coração desta flor imagina
que a neve — cuidadosamente — está caindo em toda a parte;
nada do que podemos perceber neste mundo se compara
ao poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
me compromete com a cor de seus países
e me entrega para sempre a morte cada vez que respiro
(nada sei do que te faz tão poderosa
ao me mover; mas algo em mim compreende apenas
que a voz de teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem as mãos assim tão pequenas.
tradução de Jorge Wanderley
22 de fev. de 2012
Flamboiã, acacia rubra, flor de pavão, Mil flores, árvore de fogo
Delonix regia
Familia: Caesalpiniaceae Fabaceae Leguminosae
árbol de fuego (Spanish), flamboyán (Spanish), flamboiã (Portugues Brazil)).
Spanish (Acacia roja, clavellino, flamboyán, flor de pavo, framboyán, guacamaya, josefina, Morazán, poinciana), Tamil (mayarum, mayirkonrai, panjadi, telugu), Thai (hang nok yung farang), Trade name (gold mohar), Vietnamese (phuong), Yoruba (sekeseke).
Amharic (dire dawa zaf), Arabic (goldmore), Bengali (chura, radha), Burmese (seinban), Creole (poinciana royal), German (fammenßaum, Feuerbaum), Hindi (gulmohr, kattikayi, peddaturyl, shima sunkesula),
(Fiji): flamboyante. (Madagascar): alamboronala, hintsakinsa, kitsakitsabe, sarongadra, tanahou, tsiombivositra, hitsakitsana. (Niue): pine. Hindi: gulmohar. Sinhalese (Sri Lanka): mal-mara. Tamil: mayaram, poo-vahai. Unspecified language: fannou, flanbwayan, mille fleurs, ohai, rojo, sekoula, tabach, voulatzana.
Amharic (dire dawa zaf), Arabic (goldmore), Bengali (chura, radha), Burmese (seinban), Creole (poinciana royal), German (fammenßaum, Feuerbaum), Hindi (gulmohr, kattikayi, peddaturyl, shima sunkesula),
(Fiji): flamboyante. (Madagascar): alamboronala, hintsakinsa, kitsakitsabe, sarongadra, tanahou, tsiombivositra, hitsakitsana. (Niue): pine. Hindi: gulmohar. Sinhalese (Sri Lanka): mal-mara. Tamil: mayaram, poo-vahai. Unspecified language: fannou, flanbwayan, mille fleurs, ohai, rojo, sekoula, tabach, voulatzana.
Votos de submissão de Fernanda Young
Caso você queira posso passar seu terno,
aquele que você não usa por estar amarrotado.
Costuro as suas meias para o longo inverno...
Use capa de chuva, não quero ter você molhado.
Se de noite fizer aquele tão esperado frio
poderei cobrir-lhe com meu corpo inteiro.
E verás como a minha pele de algodão macio,
agora quente, será fresca quando for janeiro.
Nos meses de outono eu varro a sua varanda,
para deitarmos debaixo de todos os planetas.
O meu cheiro te acolherá com toques de lavanda
- Em mim há outras mulheres e algumas ninfetas -
Depois plantarei para ti margaridas da primavera
e aí no meu corpo somente você e leves vestidos,
para serem tirados pelo seu total desejo de quimera.
- Os meus desejos, irei ver nos seus olhos refletidos.
- Mas quando for a hora de me calar e ir embora
sei que, sofrendo, deixarei você longe de mim.
Não me envergonharia de pedir ao seu amor esmola,
mas não quero que o meu verão resseque o seu jardim.
(Nem vou deixar - mesmo querendo - nenhuma fotografia.
Só o frio, os planetas, as ninfetas e toda a minha poesia.)
In Dores do Amor Romântico
20 de fev. de 2012
Ser poeta de Florbela Espanca
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
19 de fev. de 2012
Orquídeas Laelia
Lælia (em português: Lélia) é um pequeno gênero de orquídeas (família Orchidaceae) com vinte espécies.. São endêmicas desde o México até a América do Sul. Etimologia: O nome deste gênero (L.), foi dado em homenagem a "Lælia” , uma das vestais (sacerdotisas que cultuavam a deusa romana Vesta) , ou ainda em homenagem ao sobrenome "Lælius", da antiga família romana à qual pertenceram alguns imperadores.
Versos de otoño de Rubén Dario
Cuando mi pensamiento va hacia ti, se perfuma;
tu mirar es tan dulce, que se torna profundo.
Bajo tus pies desnudos aún hay blancos de espuma,
y en tus labios compendias la alegría del mundo.
El amor pasajero tiene encanto breve,
y ofrece un igual término para el gozo y la pena.
Hace una hora que un nombre grabé sobre la nieve;
hace un minuto dije mi amor sobre la arena.
Las hojas amarillas caen en la alameda,
en donde vagan tantas parejas amorosas.
Y en la copa de otoño un vago vino queda
en que han de deshojarse, primavera, tus rosas.
18 de fev. de 2012
Compassado de Débora Siqueira Bueno
Relógio de Salvador Dalí
No estacionamento da Faculdade de Medicina
em Belo Horizonte
(lugares muito amados têm seus nomes),
entre os imensos fícus não acho,
lugar nenhum, meu carro.
Caminho incessante noite adentro –
o que procuro?
Talvez não busque nada ou, quem sabe,
só queira descansar nesse cenário.
Compassado caminho, luz e sombra,
o sol penetra a ramagem densa.
Escuto os meus passos sobre as folhas,
ninguém a habitar aquele espaço.
Carrego em minhas mãos pequenos seixos,
meus dentes se quebraram em pedaços.
E vago, desdentada, labirinto,
as mãos bem juntas, para que não caia
pedaço algum que possa ser colado.
Súbito percebo, não são dentes –
um brilho de metal faísca à vista.
Pequenas engrenagens de relógio
aguardam, impossível, o conserto
do tempo que se foi, já desmontado.
17 de fev. de 2012
Narradores e escreventes de Elias Canetti
Os mais concorridos são os narradores. À sua volta formam-se as rodas mais apinhadas e mais constantes. As récitas duram muito tempo, no círculo mais próximo os ouvintes se acocoram e não se levantam mais. Os demais, em pé, formam um segundo círculo; esses também mal se mexem, fascinados pelas palavras e gestos do narrador. Às vezes são dois que se revezam na récita. Suas palavras vêm de longe e pairam mais tempo no ar do que as do homem comum. Eu não entendia nada e mesmo assim ficava preso a suas vozes. Eram palavras sem nenhum significado para mim, proferidas com arroubo e ardor: faziam a delícia do homem que as pronunciava e se orgulhava delas. Ele as ordenava segundo um ritmo que sempre me parecia muito pessoal. Quando fazia uma pausa, o outro se adiantava, ainda mais impetuoso e sublime. Eu podia notar a solenidade de muitas palavras e a perfídia de outras. As lisonjas me tocavam como se fossem dirigidas a mim; sentia-me em perigo. Tudo estava sob o império do narrador, as palavras mais poderosas voavam precisamente até onde ele quisesse. A atmosfera entre os ouvintes estava carregada, e mesmo eu, que entendia tão pouco, sentia sua vida que se agitava.
Para ficar à altura de suas palavras, os narradores vestiam-se de forma vistosa. Os trajes eram sempre diferentes do usual dos ouvintes. Preferiam tecidos mais suntuosos; às vezes, um deles vinha vestido em veludo castanho ou azul. Pareciam personagens importantes, mas de carochinha. Mal de dignavam a olhar a gente que os cercava. Olhavam para os seus heróis e criaturas. Quando seu olhar caia sobre alguém do público, o sujeito devia se sentir tão opaco quanto os demais. Os estrangeiros nem existiam para eles, não tinham lugar no reino de suas palavras. De início, não conseguia acreditar que se interessassem tão pouco por mim, era insólito demais para ser verdade. E eu ficava mais tempo ainda, por mais que já me sentisse atraído por outros sons naquela praça transbordante de sons, mas não repararam em mim nem mesmo quando já começava a me sentir à vontade naquela grande roda. É claro que o narrador me notara, mas para ele eu seguia sendo alheio a seu círculo mágico, uma vez que eu não o entendia.
Muitas vezes teria dado tudo para entender o que diziam, e espero que chegue o dia em que eu possa fazer justiça a esses narradores ambulantes. Mas também ficava feliz de não entendê-los. Seguiam sendo para mim um enclave de vida antiga e intocada. Sua língua lhes era tão cara quanto a minha para mim. As palavras eram seu alimento, e ninguém os seduziria a trocá-lo por algum outro melhor. Eu tinha orgulho do poder narrativo que eles exerciam sobre seus conterrâneos. Pareciam meus irmãos mais velhos e mais experientes. Nos melhores momentos, eu me dizia: eu também sei juntar pessoas à minha volta quando narro uma história, também a mim elas dão ouvidos. Mas, em vez de ir de um lugar para o outro, sem nunca saber quem vou encontrar pela frente, quais ouvidos vão se abrir para mim, em vez de viver da plena confiança no que tenho a narrar, eu me entreguei ao papel. Vivo agora sob a proteção de portas e escrivaninhas, um sonhador covarde, enquanto eles vivem no tumulto do mercado, entre cem rostos desconhecidos, mudando diariamente, livres do fardo de um saber frio e supérfluo, sem livros, ambição ou nomeada. Poucas vezes me senti bem entre os homens das nossas terras que vivem de literatura. Eu os desprezei porque desprezo alguma coisa em mim mesmo, e creio que essa alguma coisa é o papel. E de repente estava entre poetas que eu podia olhar com admiração, pois deles não havia nada que ler.
fonte: Canetti, Elias. As vozes de Marrakech. Cosac Naify, 2006.16 de fev. de 2012
Receita de casa de Lya Luft
Matisse - collioure interior (1906)
Uma casa deve ter varandas
para sonhar, cantos para chorar,
quartos para os segredos
e a ambivalência.
Um amor precisa espaço de voar,
liberdade para querer ficar,
alegria, e algum desassossego
contra o tédio.
Não se esqueçam os danos a cobrir,
o medo de partir, e o dom de surpreender
- que é a sua essência.
In Para Não Dizer Adeus
15 de fev. de 2012
Como no céu de Fabrício Carpinejar
a pedra é um cavalo preso.
As borboletas são flores com abelhas dentro.
Liberdade é apenas mudar a forma,
o que não diminui a solidão
do nascimento.
In Como no Céu
14 de fev. de 2012
TENTAÇÃO de Clarice Lispector
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade
das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as
pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de
sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no
ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço
a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado
na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras,
desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de
morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia
futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto
ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a
salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um
amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se
aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade
de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e
encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua
fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele
trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido,
acostumado, cachorro.
A menina abriu os
olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua
vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres
que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que
viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela
olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande
soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima
do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos
eram curtos, vermelhos.
Que foi que se
disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não
havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com
urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta
vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança
vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de
tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva
carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um
instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se
pediam.
Mas ambos eram
comprometidos.
Ela com sua
infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse
uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava
impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e
saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez
que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal
acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra
esquina.
Mas ele foi mais
forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás
__________________
Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira.
Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Toada da esquina de Mário de Andrade
Senti que vinha. Esperei.
Veio. Passou. Foi assim
Como se a Lua passasse
Por essa picada estranha
Que viajo desde nascer.
A redoma toda verde
Do meu peito escureceu.
Noite de maio bondoso.
Lá vai a Lua passando.
Há mesmo essa refração
Que me bota no pescoço
O cachecol da Via-Látea
E a Lua na minha mão.
Mas quando quero gozar
O belo táctil luar,
E passo a mão sobre os dedos...
Tenho de desiludir-me .
Foi mentira dos sentidos,
Foi o orvalho. Nada mais.
Veio. Passou. Foi assim
Como se a Lua...
Suspiro talqual na infância.
- Que queres, Mário? - Mamãe,
Quero a Lua - Hoje é impossível,
Já vai longe. Tem paciência,
Te dou a Lua amanhã.
E espero. Esperas...Espera...
- Pinhões!
In Poesias Completas
13 de fev. de 2012
Trovas de muito amor para um amado senhor de Hilda Hilst
imagem: Calu Fontes
Nave
Ave
Moinho
E tudo mais serei
Para que seja leve
Meu passo
Em vosso caminho.
12 de fev. de 2012
Beatriz Milhazes
Paz e Amor , 1995 - 1996 acrílica sobre tela
Beatriz Ferreira Milhazes (Rio de Janeiro RJ 1960). A artista trabalha freqüentemente com formas circulares, sugerindo deslocamentos ora concêntricos ora expansivos. Na maioria dos trabalhos, prepara imagens sobre plástico transparente, que são descoladas, como películas, e aplicadas na tela por decalque. Aglomera as imagens, preenchendo o fundo e retocando a imagem final. Os motivos e as cores são transportados para a tela por meio de colagens sucessivas, realizadas com precisão. A transferência das imagens da superfície lisa para a tela faz com que a gestualidade seja quase anulada. A matéria pictórica obtida por numerosas sobreposições não apresenta, entretanto, nenhuma espessura: os motivos de ornamentação e arabescos são colocados em primeiro plano. O olhar do espectador é levado a percorrer todas as imagens, acompanhando a exuberância gráfica e cromática presente em seus quadros.
fonte: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=573
Uns de Caetano Veloso
Uns vão
Uns tão
Uns são
Uns dão
Uns não
Uns hão de
Uns pés
Uns mãos
Uns cabeça
Uns só coração
Uns amam
Uns andam
Uns avançam
Uns também
Uns cem
Uns sem
Uns vêm
Uns têm
Uns nada têm
Uns mal
Uns bem
Uns nada além
Nunca estão todos
Uns bichos
Uns deuses
Uns azuis
Uns quase iguais
Uns menos
Uns mais
Uns médios
Uns por demais
Uns masculinos
Uns femininos
Uns assim
Uns meus
Uns teus
Uns ateus
Uns filhos de Deus
Uns dizem fim
Uns dizem sim
E não há outros
11 de fev. de 2012
Insônia de Débora Siqueira Bueno
Adan y Eva de Yoshiro Tachibana
O corpo abandona-se ao peso.
Respira opresso,
deprime e
imprime
a marca
ao leito.
Insone,
se despe.
A humana
vulnerabilidade
ao meu lado descansa
exposta, tangível, entregue.
Carregou muitos fardos, tanto cansaço.
Deixa a vigilância, rende-se.
Em silêncio
observo,
espero
e velo
o sono,
os sonhos,
o quieto repouso.
Entregues, dormimos de mãos dadas.
Isabelle Tuchband
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Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector
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