30 de abr. de 2013

Maternidade


fotos: Clarice Lispector e filhos 
“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].” 
Clarice Lispector

29 de abr. de 2013

O riso é perigoso de Fabrício Carpinejar

Clarice Lispector beliscava sua amiga Lygia Fagundes Telles quando entravam juntas num encontro literário:

– Não ri, vai! Séria, cara de viúva.
– Por quê? – perguntava Lygia.
– Para que valorizem o nosso trabalho.
Não há mesmo imagem de alguma risada da escritora Clarice Lispector. Em livros e revistas, a cena que persiste é seu olhar desafiador, emoldurado por um rosto anguloso, compenetrado e enigmático. Os lábios não se mexem, absolutamente contraídos, envelopes fechados para a posteridade.
Lispector não mostrava suas obturações, sua arcada para ninguém. Não se permitia gargalhadas para não parecer mulher superficial e leviana.
Ela percebeu que existe um imenso preconceito contra a alegria. Os críticos não a levariam a sério, dizendo que ela não era densa, não inspirava profundidade; acabariam por sobrepor a aparência faceira aos questionamentos metafísicos de sua obra.
Seu medo não era bobo. O riso permanece perigoso. Todos temem os contentes. Falam mal dos contentes.
O riso gera inveja, ciúme, intriga: “Por que está feliz, e eu não?”.
A alegria é malvista em casa e no trabalho, sempre intrusa, sempre suspeita equivocada de uma ironia ou de um sentimento de superioridade.
Ainda acreditamos que profissionalismo é feição fechada, casmurra. Ainda deduzimos que competência é baixar a cabeça e não entregar nossas emoções.
Quanto mais triste, mais confiável. Quanto mais calado, mais concentrado. O que é um tremendo engano.
A criatividade chama a brincadeira, assim como a risada renova a disposição.
Se um funcionário ri no ambiente profissional, o chefe deduz que ele está vadiando, sem nada para fazer. Poderá receber reprimenda pública e o dobro de tarefas. Quem diz que ele não está somente satisfeito com os resultados?
Se sua companhia ri durante a transa, você conclui que está debochando do seu desempenho. Quem diz que não é o contrário, que ela não festeja o próprio prazer?
Se a criança ri no meio da aula, o professor compreende como provocação e pede para que cale a boca. Quem diz que ela não está comemorando algum aprendizado tardio?
Se o filho ri quando os pais descrevem dificuldades profissionais, a atitude é reduzida a um grave desrespeito. Quem diz que ele não achou graça do tom repetitivo das histórias?
Se a esposa ou marido ri e suspira à toa, já tememos infidelidade.
O riso é escravo dos costumes, sinônimo de futilidade e distração quando deveria ser visto como sinal de maturidade e envolvimento afetivo.
Não reagimos bem à felicidade do outro simplesmente porque ela ameaça nossa tristeza.


28 de abr. de 2013

O fazedor de Jorge Luis Borges


Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto.

BORGES, Jorge Luis. O fazedor. In: Obras completas (volume II). São Paulo: Editora Globo, 2000.

27 de abr. de 2013

Will Barnet (1911 in Beverly (Massachusetts), USA) pintor











Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo de Maria Gabriela Llansol

Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
eu poderia escrever sobre os problemas do tempo em que vivemos
mas só poderia falar deles a partir do meu, do meu tempo,
des-datando, que é o modo como escovo o fato dessas imagens
que, aos que tomam este caminho,
lhes falam constantemente da sua irrealidade. O mundo.
Mas qual? No meu
combatem-se
existentes poderosos contra reais talvez inviáveis — o «é as-
sim» dos cínicos contra o «tenhamos um amor comum», de
Eckhart.
Basta atravessar a rua para encontrar o nosso tempo, basta-
-me voltar atrás para me encontrar no meu. Algures, no meu
corpo, entre atravessar e voltar atrás, houve o embate das
imagens.
Da televisão que vejo ao texto que escrevo, a distância é
incomensurável.
Não preciso carregar no botão para encontrar nos textos
que eu der a ler, inapagáveis, imagens próprias e não eféme-
ras — se os olhos de quem os ler forem também inapagáveis.
No tracejado desse inapagável, formam-se olhos que são es-
pelhos para as imagens reais de todos o territórios nómadas
que criamos, e vamos trocando entre eles e nós.
Lembro-me, a propósito de imagens, da frase de uma can-
ção que ouvi há anos:

«se eu fosse aquela em quem tu pensas, a quem tu tens
amor...»

Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
que ouço na rua as patas dos cavalos; que vou sair;
que vou pentear-me;
que vou vestir o casaco;
que está um dia nublado;
que há tantos outros (não os outros) que existem, querem ser reais,
e não morrer.

Afirmo que ir sair e não querer morrer me parece, de
súbito, uma espécie de constituição das imagens como se ne-
las houvesse uma certa matéria consciente e imperecível para
lá do corpo que a si própria perguntasse de que modo trazer o
que é vida corrente para o invisível não tomado pela morte.

Não posso perguntar. A escrever tenho de saber, na maior
das certezas.

 Inquérito às quatro confidências. Relógio D´água, 1996

26 de abr. de 2013

Gilvan José de Meira Lins Samico (Recife,1928- )














Las cosas - Jorge Luís Borges

El bastón, las monedas, el llavero,
la dócil cerradura, las tardías
notas que no leerán los pocos días
que me quedan, los naipes y el tablero,
un libro y en sus páginas la ajada
violeta, monumento de una tarde
sin duda inolvidable y ya olvidada,
el rojo espejo occidental en que arde
una ilusoria aurora. Cuántas cosas,
limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
nos sirven como tácitos esclavos,
ciegas y extrañamente sigilosas
durarán más allá de nuestro olvido;
no sabrán nunca que nos hemos ido.
....................................................................
A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas páginas a seca
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que nos fomos num momento.

25 de abr. de 2013

A dona que eu amo de Bernal de Bonaval Bernal de Bonaval (Galiza, séc. XIII)


 Codex Manesse  Zurich in the early 14th century

A dona que eu am'e tenho por senhor 
amostrade-mi-a, Deus, se vos en prazer for, 
senom dade-mi a morte. 
                       
A que tenh'eu por lume destes olhos meus 
e por que choram sempr', amostrade-mi-a, Deus, 
senom dade-mi a morte. 

Essa que vós fezestes melhor parecer 
de quantas sei, ai, Deus!, fazede-mi-a veer,
senom dade-mi a morte. 

Ai Deus! que mi a fezestes mais ca mim amar, 
mostrade-mi-a, u possa com ela falar, 
senom dade-mi a morte.

24 de abr. de 2013

Peter Newell (1862 - 1924) ilustrador






Quando sua mulher explica o óbvio de Fabrício Carpinejar


O amor ensina o óbvio. O ridículo.
Só sua mulher pode ensinar aquilo que deveria ter aprendido antes e que tem vergonha de confessar que ainda não sabe. Pode ser qualquer atividade banal, usar o abridor de latas ou andar de bicicleta, amarrar cadarços ou soltar pandorga, fazer pipoca na panela ou embaralhar cartas, criar fogo entre duas pedras ou ligar a máquina de lavar.
O amor é uma segunda infância, a repescagem das descobertas

23 de abr. de 2013

Verena Matzen ( 1965, Buenos Aires, Argentina )


 











O ameaçado de Jorge Luis Borges

Leon Ferrari

É o amor. Terei de me esconder ou fugir.
Crescem as paredes de seu cárcere,
como em um sonho atroz.

A bela máscara mudou,
mas como sempre é a única.
De que me servirão meus talismãs:
o exercício das letras, a vaga erudição,
o aprendizado das palavras que usou
o vago norte para cantar seus mares e suas espadas,
a serena amizade, as galerias da biblioteca,
as coisas comuns, os hábitos,
o jovem amor de minha mãe,
a sombra militar de meus mortos,
a noite intemporal, o gosto do sonho?

Estar ou não é a medida do meu tempo.
O cântaro já se quebra sobre a fonte,
já se levanta o homem à voz da ave,
já escureceram os que olham pelas janelas,
mas a sombra não trouxe a paz.

É, eu sei, é o amor:
a ansiedade e o alívio de ouvir tua voz,
espera e a memória, o horror de viver o sucessivo.
É o amor com suas mitologias,
com suas pequenas magias inúteis.
Há uma esquina pela qual não me atrevo a passar.
Agora os exércitos me cercam, as hordas.
(este quarto é irreal; ela não o viu.)

O nome de uma mulher me delata.
Dói-me uma mulher por todo o corpo.

             ******************

Es el amor. Tendré que cultarme o que huir.
Crecen los muros de su cárcel, como en un sueño atroz.
La hermosa máscara ha cambiado, pero como siempre es la única.
¿De qué me servirán mis talismanes: el ejercicio de las letras,
la vaga erudición, el aprendizaje de las palabras que usó el áspero Norte para cantar sus mares y sus espadas,
la serena amistad, las galerías de la biblioteca, las cosas comunes,
los hábitos, el joven amor de mi madre, la sombra militar de mis muertos, la noche intemporal, el sabor del sueño?
Estar contigo o no estar contigo es la medida de mi tiempo.
Ya el cántaro se quiebra sobre la fuente, ya el hombre se
levanta a la voz del ave, ya se han oscurecido los que miran por las ventanas, pero la sombra no ha traído la paz.
Es, ya lo sé, el amor: la ansiedad y el alivio de oír tu voz, la espera y la memoria, el horror de vivir en lo sucesivo.
Es el amor con sus mitologías, con sus pequeñas magias inútiles.
Hay una esquina por la que no me atrevo a pasar.
Ya los ejércitos me cercan, las hordas.
(Esta habitación es irreal; ella no la ha visto.)
El nombre de una mujer me delata.
Me duele una mujer en todo el cuerpo.

SIMONE GRECCO artista plástica pela Belas Artes de São Paulo