15 de mai. de 2013

Fotografei você de Maria Camargo


-- Pai, me empresta a câmera?
-- De jeito nenhum.
-- Mas por quê?
-- Porque não.
-- Mas você nem usa mais!
-- Uso, sim.
-- Mentira, ela tá abandonada aqui. E imunda, olha...
-- Esquece, Maria.
Não esqueci. Talvez o diálogo não tenha sido exatamente assim --quem se lembra com pontos e vírgulas de uma conversa que aconteceu há mais de 25 anos?-- mas foi quase isso, ou poderia ter sido. A vida era analógica então, os sais de prata da película muito mais confiáveis para guardar memórias do que as nuvens do século que viria.
A velha Nikon F, objeto do meu desejo, já tinha tido seu tempo: com ela meu pai fotografou os relevos de madeira nos anos 60, a primeira mulher, Marie Louise, os filhos Cristóvão e Carlos. Depois, minha mãe muito jovem, as primeiras esculturas em mármore, meus olhos de bebê fixando a câmera. Inês e Irene chegaram depois, mas essas ele não fotografou --ou, talvez porque doesse muito, tenha preferido guardar segredo do que viu através da lente.
Minha infância já tinha acabado quando descobri a câmera aposentada no fundo do armário. A lente, cuidadosamente ornamentada por fungos, parecia obra da minha prima Clezinha, que me deu aulas de bordado lá no Ceará. Mas dos pontos de bordado eu não lembrava mais nada, só pensava em fotografar.
-- Mas como é que eu vou fazer o curso de fotografia?
-- Usa a sua câmera.
-- Ela é ruim demais, pai. E é automática, tem que ser uma manual. Pra treinar abertura, velocidade.
-- Então não faz o curso. Paciência.

Paciência não era o meu forte. Nas semanas que se seguiram, sempre às terças e quintas, eu religiosamente roubava a Nikon do armário. As aulas já estavam prestes a terminar quando o dono da câmera acabou na frente dela, posando pra mim. Seríssimo, nenhum esboço de sorriso no rosto.

-- Não vai demorar, vai?
-- Tenho que fazer várias versões, pra comparar depois.
-- Vamos logo com isso.
Demorou. Eu tinha que pensar antes de ajustar o foco, a velocidade --muitos passos lentos antes de apertar o disparador. A câmera ainda era uma estranha para mim. Ele, o meu modelo, também.
Estranhos embora íntimos, éramos só nós dois ali naquela sala ensolarada em Copacabana. Nós, a Nikon e mais umas tantas perguntas bailando no ar como a poeira no contraluz: de quanto tempo e de que diafragma eu precisava para a exposição perfeita? De quanto tempo precisava para chegar até ele, para entender o que ainda não entendia? Por que ele me negou a câmera, por que fingiu não perceber meus roubos programados, por que aceitou posar para mim? O que eu queria aprender de verdade quando montei o tripé na frente do meu pai e olhei para ele através da lente?
-- Chega, tenho mais o que fazer.
-- Espera.
-- Esperar o quê?
-- A luz. Tá ficando mais bonita.
Eu sabia: tinha um sorriso escondido ali, em algum lugar. Ele sempre tinha. Apertei o botão.

-- Posso te mostrar as fotos?
-- Que fotos?
-- Do Pará. Lá do filme.
O filme era "Brincando nos Campos do Senhor", do nosso querido amigo Hector Babenco. Fui visitar as filmagens um ano e meio depois da tarde do retrato. Trouxe de Belém um monte de rolinhos de filme para serem revelados, uma doença que peguei no Norte, como na música do Chico, e o princípio de uma história de amor que me daria um filho.
-- Bonitas.
-- As fotos?
-- Claro que são as fotos. O que mais podia ser?
-- Sei lá. As índias.
-- Muito boas. As fotos, não as índias.
-- Nossa. Será que vai chover?
Ele riu, eu ri, não choveu. Nem naquele dia, nem no seguinte --quando meu pai morreu, fazia sol. E uma luz danada de bonita.

fonte: Folha de São Paulo - Ilustríssima. 11/05/2013

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