4 de mai. de 2015

O FAZEDOR DE LUZES :: Mia Couto


Estou deitada, baixo do céu estreloso, lembrando meu pai. Nesse há muito tempo, nós nos dedicávamos, à noite, a apanhar frescos. O céu era uma ardósia riscada por súbitos morcegos, desses caçadores de perfumes.
– Pai, eu quero ter uma estrela!
– Estrela, não: é muito custosa de criar.
Eu insistia. Queria possuir estrela como as outras meninas tinham brinquedos, bonecos, cachorros. Aqui, no rés da terra, eu não podia ter nada. Ao menos, lá no infirmamento, se autenticassem minhas posses.
– Mas, pai: o senhor diz que faz criação de estrelas.
– Fazia, tive que entregar todas. Eram dívidas, paguei com estrelas.
– Eu sei que sobrou uma.
Meu pai não respondia nem sim nem talvez. Era um homem vagaroso e vago, sabedor de coisas sem teor. Dedicava-se a serviços anónimos, propício a nenhum esforço. Dizia:
– Sou como o peixe, ninguém me viu transpirar.
E me alertava: veja o musgo, que é o modo do muro ser planta. Quem o rega, quem o aduba? Nada, ninguém. Há coisas que só paradas é que crescem.
– É, minha filha: aprenda com o mineral. Ninguém sabe tanto e tão antigo como a pedra.
Cuidava-me sozinha, órfã eu, viúvo ele. Ou seria ele o órfão, sofrendo do mesmo meu parentesco, o falecimento de minha mãe? Preguntas dessas são incorrigíveis: quem sabe é quem nunca responde. Na realidade, meu nascimento foi um luto para meu pai: minha mãe trocou de existir em meu parto. Me embrulharam em capulana com os sangues todos misturados, o meu novinho em gota e o dela já em cascata para o abismo. Esse sangue transmexido foi a causa, dizem, de meu pai nunca mais compridar olho em outra mulher. Em minha toda vida, eu conheci só aquela exclusiva mão dele, docemente áspera como a pedra. Aquele côncavo de sua mão era minha gruta, meu reconchego. E mais um agasalho: as estranhas falas com que ele me enevoava o adormecer.
– Você escuta os outros se lamentarem de seu pai.
– Não escuto, não – menti.
– Dizem eu não faço nada na vida, não faço nem ideia.
E prosseguia, se perdoando:
– Mas eu, minha filha, eu existo mas não sei onde. Nessa bruma que fica lá, depois do estrangeiro, nessa bruma é que você me vai encontrar a mim, exacto e autêntico. Lá fica minha residência, lá eu sou grande, lá sou senhor, até posso nascer-me as vezes que quiser. Eu não tenho um aqui.
– Não diga assim, pai.
– Havia de ver, minha filha, lá eu não sou como neste lado: não cedo conversa a um qualquer. Pois, nesse outro mundo, filhinha, eu tenho o mais requerido dos serviços: sou fabricador de estrelas. Sim, faço estrelas por encomenda.
– Verdade, pai?
– Verdade, filha. Pergunte a Deus, sou até fornecedor do Paraíso.
Voltávamos ao quintal, deitávamos a assistir ao céu. Eu já adivinhava, meu velho não suportava silêncio. E, num gesto amplo, ele cobria o inteiro presépio do horizonte:
– Tudo isso fui eu que criei.
Eu estremecia, gostosa de me sentir pequenina, junta a esse deus tão caseiro. E lá, pai, eles nos vêem a nós? Nada, filha, não nos vêem. A luz daqui está suja, os homens poeiraram isto tudo.
– Mas ela nos vê, lá nessa estrela onde foi?
O pai não respondia. Ele que tinha palavra para tudo, tropeçava sempre no mesmo silêncio. Minha mãe: dela não se mencionava nunca nada. Ela não era nem criatura, nem coisa, nem causa. Nem sequer ausência. E não sendo nem sujeito nem passado, ela escapava a ser lembrada. Meu velho fugia a sete corações do assunto da saudade. Como daquela vez que a mão, veloz, enxugou o rosto.
– Você nunca olhe o céu enquanto estiver chorando. Promete?
– Então, me dê uma estrela, pai.
– Nada, as estrelas não podem ser dadas. Nunca veja a noite por través das lágrimas – insistiu ele, sério.
Depois, quando se ergueu lhe veio uma tontura, sua mão procurou apoio no meio de dançarinas visões. Eu o amparei, raiz segurando a última árvore.
– Está doente, pai?
– Qual doente?! É a terra que não gosta que eu saia de cima dela. A terra é uma mulher muito ciumenta.
E outras vezes ele voltou a tontear. Até que uma noite, após estranho silêncio, ele me disse, esquivo, quase tímido:
– Vá lá. Escolha uma...
– Posso, pai?
E fingi apontar uma estrela, entre os mil cristais do céu. Ele fez conta que anotava o preciso lugar, marcando no quadro negro o astro que eu apontara. Me ajeitou a mão na minha fronte e me puxou para seu peito. Senti o bater do seu coração:
– Escolheu bem, filha.
E explicou: aquela que eu indicara seria a luz onde ele iria morrer. Ninguém lembra o escuro onde nasceu. Todos viemos de fonte obscura. Por isso, ele preferia a claridade dessa estrela ao escuro de um qualquer cemitério. Então, por primeira vez, meu pai fez referência àquela que me anteriorou.
– É nessa estrela que ela está.
Agora, deitada de novo nas traseiras da casa, eu volto a olhar essa estrela onde meu pai habita. Lá onde ele se inventa de estar com sua amada. E em meus olhos deixo aguar uma tristeza. A lágrima transgride a ordem paterna. Nesse desfoco, a estrela se converte em barco e o céu se desdobra em mar. Me chega a voz de meu pai me ordenando que seque os olhos. Tarde de mais. Já a água é todas as águas e eu me vou deitando na capulana onde as primeiras mãos me seguraram a existência.

Mia Couto, Na berma de nenhuma estrada e outros contos, Lisboa, Caminho, 2001.

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