25 de jan. de 2018

Eu nem sei se vale a pena :: Mário de Andrade

Christian Tragni 
Eu nem sei se vale a pena
Cantar São Paulo na lida,
Só gente muito iludida
Limpa o goto(*) e assopra a avena(**),
Esta angústia não serena,
Muita fome pouco pão,
Eu só vejo na função
Miséria, dolo, ferida,
Isso é vida?
São glórias desta cidade
Ver a arte contando história,
A religião sem memória
de quem foi Cristo em verdade,
Os chefes nossa amizade,
Os estudantes sem textos,
Jornalismo no cabresto,
Tolos cantando vitória,
Isso é glória?
divórcio pra todo o lado,
As guampas fazem furor,
Grã ‑finos do despudor,
no gasogênio empestado,
das moças do operariado
São os gozosos mistérios,
Isso de ter filho, néris,
E se ama seja o que for,
Isso é amor?
Mas o pior desta nação
E ter fábrica de gás
Que donos‑da‑vida faz
Ianques e ingleses de ação,
Tudo vem de convulsão
Enquanto se insulta o Eixo,
Lights, Tramas, Corporation,
E a gente de trás pra trás,
Isso é paz?
Pois nada vale a verdade,
Ela mesma está vendida,
A honra é uma suicida,
nuvem a felicidade,
E entre rosas a cidade,
Muito concha e relambória,
Sem paz, sem amor, sem glória,
Se diz terra progredida,
Eu pergunto:
Isso é vida?

** Goto é um sinônimo informal de glote. As duas locuções significam, nas palavras do Houaiss, “ser objeto de agrado, de atenção; cair nas boas graças”. 
** antiga flauta

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