15 de dez. de 2023

Eu estava para fazer anos :: Lívia Garcia-Roza

 Eu estava para fazer anos, e sempre fiquei muito feliz com a data. Adoro aniversário! Não ia fazer festa, mas receberia amigos. Acho que naquele aniversário eu iria comemorar 31 anos. Já tinha passado pelo impacto que é fazer 30 anos. Nunca esqueci o filme estrelado por Maurice Ronet, "Trinta anos essa noite." Lembro até da fila pra comprar ingresso no cinema Payssandú. Invariavelmente íamos ao Lamas depois do cinema. Mas naquela noite, véspera do meu aniversário, você havia me convidado para um jantar íntimo e caprichado. Acho que fomos ao "Nino's." Depois do jantar você quis "esticar", tomar um drinque num bar. Já estava meio cansada, mas fui. E você não tinha pressa pra voltar pra casa, já era de madrugada e os drinques não acabavam. Então, quando finalmente a conta fechou, fomos embora. Mas na passagem, você quis parar numa banca para perguntar se já tinha saído o Diário de Notícias. Jornal que você assinava uma coluna. Você veio da banca com o jornal na mão e quando entrou no carro jogou ele no meu colo dizendo para que eu abrisse na página da coluna. Abri e dei de cara com a minha fotografia, abaixo dela estava escrito o meu nome e em seguida vinha um texto.

"O que se pode dizer de uma moça que faz anos hoje e que acredita em fazer anos? Que se pode dizer a uma moça que nasceu perto do Natal, e que acredita em Natal, em Papai Noel, em árvore enfeitada, em festa e em família?

Que mais dizer a uma pessoa a quem já se disse tudo? Que mais dizer a uma pessoa que transcendeu as palavras, e que descobriu o ser, o existir, puro e simples? Que dizer de uma mulher que, quando criança, descobriu em seu colégio uma escada bem larga "pra todo tipo de amiga"? Que dizer da menina que cresceu e que leva consigo essa hipotética escada, essa imensa e infinita escada, mundo afora, onde quer que esteja? Livia tem o interior de um azul lindíssimo, onde o sol de verão brilha forte e às vezes ofusca, e o vento é brisa e vendaval, e as chuvas são fortes e rápidas e limpas, prometendo inesquecíveis arco-íris?

Que dizer de uma mulher que escolheu o caminho para a frente, que escolheu afastar-se de si mesma para reencontrar-se em algum ponto da jornada, mudada ou igual, mas inteira e desassombrada? Para reencontrar-se talvez na mesma praia de Icaraí onde a menina se entregou ao sol, e descobriu que era possível sair com o sol em seu ventre, eternamente gerando-se e distribuindo-se.

Na praia de Icaraí, a menina dourada de sol, sorriso branco, tentava adivinhar a mulher que a esperava no fim do percurso. A menina de bicicleta cresceu e sem perceber, pedala junto com a mulher de carro que ainda corre, o sorriso ainda branco e livre,  a procura da menina que a espera no fim do caminho. Ou talvez o caminho não tenha fim. E o milagre já tenha acontecido. Menina e mulher se uniram no meio da procura, e o sorriso ficou mais branco, e o dourado mais profundo, e nasceu Livia.

Que se pode dizer de uma mulher que nasceu em algum ponto da alegre procura, talvez na explosão de uma onda, talvez, num alvorecer, talvez numa lufada de vento. Que dizer a moça centauro, o arco da promessa eternamente teso? Que dizer a moça que é, a um tempo, o arco e a flecha, o voo, o riso e o grito? Que gritar para essa menina alada? Que não vá? Que me espere? Que vá? Que me desista?

Que dizer a ela hoje? Que dizer a ela, que nasceu num dia igual ao de hoje, mas que na verdade está eternamente renascendo? Como abraçá-la diferente, hoje? E por que não? Por que não abraçá-la sempre diferente, hoje, e amanhã, e depois, e sempre? Por que não acreditar, igual a ela, em uma data no calendário, e deixar que essa data seja razão e explicação para esse abraço de hoje, e esse beijo de hoje?

Hoje, vamos nos sentar na escada com degraus bem grandes, pra qualquer tipo de amigo, e vamos cantar, e trocar olhares cúmplices, e dar presentes, e rir, e ver que é possível. Que alguma coisa ainda é possível. Porque o sol existe nela, e o vento e o mar e a praia e a infância.

Que dizer a Livia, hoje? É fácil. Dizer tudo que ela quer ouvir. Que o sol existe, e a praia e o mar, e a esperança. E que essa data se repita por muitos e muitos anos. Livia faz anos hoje, e o lugar-comum se transforma em verdade: parabéns pra você nesta data, querida."

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